Menu

Acesso às principais seções do Musea

Imagem de capa da exposição

"Tiam Schuuooom Cash!" Instalação do artista José Spaniol

Itu

FAMA Museu

29/04/2022 - 02/10/2022

José Spaniol

Em meados dos anos 1960 surgiu uma série de proposições e movimentos artísticos em diversas partes do mundo que tinham em comum a crítica ao tratamento da obra de arte como mercadoria subordinada à circulação dos bens de consumo na sociedade capitalista. Numa dessas direções, a arte conceitual propunha a desmaterialização do objeto artístico e a valorização da ideia contida na obra ou do puro pensamento do qual esta se originaria. Voltava-se à tese clássica, tão em voga no Renascimento e em outras idades, desde o século XVI, sobre a origem da obra de arte pertencer ao Inteligível, à primeira Ideia, extrovertida depois no sensível, numa matéria específica, mas fosse nobre ou não o material utilizado, sempre baixa em relação àquela origem. Foi quase óbvio então que os artistas conceituais se voltassem ao texto e às palavras, utilizando-se muitas vezes das teorias linguísticas disponíveis na medida em que ações mais efêmeras (apenas verbais, pronunciadas ou escritas) poderiam circunscrever a arte dentro de um nicho controlado por ele e pelo seu público mais imediato, formado por outros artistas, críticos, intelectuais, estudantes, mas desinteressante ao mercado convencional de arte. Foi exemplar neste sentido as produções do grupo Fluxus e as do Art & Language, entre outros. Em especial, as lições estéticas de Hegel sobre a "dissolução" (morte) da obra de arte à medida que ela se preenche da Pura Ideia ou do Espírito (basta lembrar que na escala hegeliana o último lugar reservado à esfera da arte é ocupado pela poesia) foram reabilitadas e aplicadas com um sentido político naqueles anos. Na mesma época, mas numa direção diversa, os italianos lançavam a Art Povera, com a utilização explícita de materiais comuns, mas não usuais para a consecução da obra artística (pedras, cordas, palha, madeira, chumbo, vidros, jornais velhos, etc.) igualmente como maneira de criticar o sistema artístico estabelecido. Como José Spaniol se formou na década de 1980, é natural que tenha tido contato com ambas as direções e o conhecimento das atitudes vistas como indispensáveis nos campos da arte conceitual ou pós-conceitual e dos novos realismos (posteriores à Art Povera) se fizesse presente, ainda que de modo transversal, em suas produções atuais.

A instalação Tiam Schuuooom Cash! (2016) reúne dois grandes barcos de madeira suspensos no espaço e sustentados por grossos calamos de bambu a cinco metros de altura. Ao olhar repentinamente para o conjunto há uma dupla impressão: a de movimento de barcos ancorados num cais, em algum porto de vento constante, enfrentando o marulho agitado; a de encalhe dos mesmos sobre um bambuzal (distantes do mar) por efeito de uma tempestade que os fez voar depositando-os num lugar improvável. A sensação de estranhamento (desejada pelo artista) se completa com um áudio no qual há a mimese dos sons (onomatopeias) das ondas marinhas dobrando-se contra si mesmas ou batendo às vezes levemente, às vezes com violência nos cascos das embarcações. Numa segunda observação, entendemos que todo o conjunto se insere com precisão dentro de um terceiro espaço (o lugar real onde se localiza) que não pertence nem ao mar nem à mata. Há por certo um interesse arquitetônico que se explicita neste momento, mas que liga o artista ao "pitoresco", ou antes às suas ruínas, como gênero antigo para a representação das paisagens.

No século XVII, Sir William Temple, um dos principais teóricos deste gênero, ao visitar os jardins imperiais chineses ficou admirado com o fato deles serem artificialmente construídos com a condição de parecerem naturalmente produzidos, princípio que ele denominou sharawadgi, "a beleza sem ordem". Zé Spaniol tem um anseio semelhante, porque parte de um controle absolutamente racional de todas as etapas de produção do trabalho para alcançar um resultado que aparente naturalidade. E é justamente desta tensão, entre estranhamento e naturalidade que a sua obra ganha força. A memória do mar vem ainda pelo registro em áudio na voz do próprio artista que interpreta os sons das ondas e das dobras das águas em diversas ocasiões. A onomatopoese é fundamental aqui porque conclui todo o conjunto, impondo ordem ao caos. Spaniol tem um inventário de sons de mares de vários lugares em que demonstra uma análise quase anatômica do comportamento da água sob influência das marés e dos ventos. Tenha-se, por exemplo, as Onomatopeias de "Toque Toque Grande, Mar Aberto" (2015):

1. Onda batendo e correndo sobre a areia

. XIIIIII XIIIIII XIIIIII...BAMM BAMM... BAMM BAMM XIIIIII XIIIIII...

2. Onda alta, 100 metros distante da praia, ronca grave quase como um rugido; rola sobre si mesmo a 1m do fundo. Essa onda olha temerosa para a praia.

. RUUAAAMM CHUÃÃMM RRUUUOOOMMM...

3. Onda média batendo e deslizando sobre a água, baixa, a 50 cm do fundo.

. CLASH BAMM XIIIIÍÍÍ... TIISHSHSH...

4. Onda alta, rugindo e batendo sobre a água baixa.

. RRUUUAAMAAMM UUOOOMM BAMBAMMM!

5. Onda média, batendo e rolando sobre a água baixa.

. BAMP SCHUUUOOOOMMM...CASHSHSHSH!!

6. Água rápida correndo sobre a água lenta, não é mais onda apenas impulso, camadas

sobrepostas em movimentos paralelos a 30 cm do fundo.

. TIIIOMM TIISHSHSH TIIOÃMMM...

7. Onda média fraca, o volume transformando-se em superfície em movimento liso.

Quando cai, bate uma única vez e corre plana sobre a água lenta.

. XXUUUUÚSHSH BAMM SCHIIIOOOMMMM...USCHSCHSCH!

8. Onda grande rolando sobre si mesma longe da areia.

. RUSCH UUOOOOMMMMM BAMMMM...

9. Onda grande rolando sobre si mesma longe do fundo. O líquido rugindo para o

sólido.

. RRRUUUOOOMMMM...CLASHSHSHSH...XIIIIII....!

10. Água rápida correndo sobre a água lenta, marulho e atrito.

. TIIISSCH...CHIIISSS..TIIISSCHSS...CHIIISSS...

11. Marola batendo e revolvendo a areia, último impulso da onda.

. CASHSH CASHSH CAASHSH...

12. Onda grande e alta, arranca areia do fundo, quando cai bate no chão e provoca um

grande estrondo.

. RRRUUUOOMM RROOAAMM CAASCHÃÃMMM...BAMMMM!!

12. Onda contínua e equilibrada, decresce em proporção e harmonia com a areia.

. SCHAAAMM TISHSH CHISSSCHSCHS...

13. Onda silenciosa, apenas um volume em movimento

Ao lado de cada onomatopeia há uma descrição que cristaliza a experiência sensorial na linguagem escrita. Esta transcrição passa a ter um caráter universal, não importando mais o lugar de onde se deu por manifesto o primeiro ato de ouvir as ondas. Ao incorporar este desenho ou forma conceitual à instalação, composta de materiais diversos e sensorialmente brutos, o bambu, a madeira, as cordas, Zé Spaniol demonstra que assimilou de maneira conciliadora as direções mencionadas no início deste texto. A mim, além de tudo isso, vem também a imagem do grande navio sendo arrastado selva adentro, no filme de Werner Herzog, "Fitzcarraldo" (1982), embora com os sentidos trocados em relação à instalação do Zé. Pois no filme se vê que os planos ambiciosos de Brian Sweeney Fiztgerald se desmantelaram todos, gerando sofrimento e infortúnio para aqueles que o seguiram, assim como os rumos de nosso país, que se encontram hoje à deriva em virtude da incúria e da irracionalidade dos nossos governantes.

Luiz Armando Bagolin, abril de 2022

Luiz Armando Bagolin

Curadoria

Patrocínio