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Era uma vez o Moderno

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São Paulo

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Centro Cultural Fiesp

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De 10 de dezembro de 2021 a 29 de maio de 2022

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Início da exposição

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Olá,

sejam bem vindas, sejam bem vindos à exposição “Era uma vez o moderno”.

Aqui no Musea você vai encontrar muito conteúdo para enriquecer sua experiência nesta visita. São 14 audioguias na voz do curador e 18 faixas de audiodescrição, incluído aí o texto institucional da exposição. Encontrará também 41 textos complementares que estarão disponíveis em áudio através do leitor de tela do seu aparelho.

Para navegar por este conteúdo basta ir avançando nas faixas. Para facilitar essa navegação todas as audiodescrições estão identificadas com esse sinal sonoro (Colocar sinal sonoro) no inicio de cada uma delas.

Esperamos que você tenha um ótima experiência.

Texto Institucional

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Rupturas, reflexões e novas perspectivas.

Às vésperas da comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna, de 1922, o Centro Cultural Fiesp tem a satisfação de receber em sua Galeria de Arte, a exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944].

Fruto de uma parceria entre o Sesi-SP e a Universidade de São Paulo (USP), a mostra expõe parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) nunca exposto antes, como cartazes, diários, manuscritos, obras e outros itens de artistas como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, entre outros nomes que viveram ativamente esse período tão significativo para a história da arte brasileira.

A produção de três décadas do modernismo brasileiro, na voz de seus protagonistas, abre espaço para reflexões sobre o movimento em sua época e as reverberações, ainda, nos dias atuais.

Paulo Skaf

Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Serviço Social da Indústria do Estado de São Paulo (Sesi-SP)

Apresentação

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A exposição que trouxemos para você, cara ou caro visitante, abrange algumas produções associadas ao que se chamou de modernismo brasileiro num arco de aproximadamente 30 anos.

Nos utilizamos sobretudo dos artistas e intelectuais que participaram ou estiveram em torno da emblemática Semana de Arte Moderna, que comemorará seus 100 anos em 2022, para apresentar alguns dos caminhos trilhados pela arte moderna no Brasil.

Obviamente esta é uma história que não começa e nem termina na Semana. A iniciamos a partir da lembrança da primeira exposição individual de Emma Voss, em São Paulo, em 1910. Na sequência, lembramos da exposição de Lasar Segall, em 1913 (com exemplos da arte expressionista alemã) assim como da primeira exposição individual de Anita Malfatti, feita no Mappin, no centro de São Paulo, em 1914.

Observem que será a primeira vez que se apresenta ao público o diário da artista no qual há a descrição pormenorizada dos preparativos da exposição assim como as reações e humores daqueles que a visitaram. Há também obras importantes pertencentes ao período em que a artista estudou em Nova York (onde conheceu Marcel Duchamp) e que foram apresentadas em sua exposição individual de 1917. Esta exposição deflagrou a crítica furiosa de Monteiro Lobato demarcando ao mesmo tempo o primeiro conjunto de trabalhos feitos no Brasil em diálogo com o cubo-futurismo do início da década de 1910.

Depois passamos ao núcleo da Semana de Arte Moderna, que teve uma importância como marco simbólico coletivo de artistas egressos de diversas partes do país (assim como alguns de origem estrangeira) interessados em romper com o passado da cultura oligárquica e rural brasileira, ainda que muitos dos moços e moças participantes fossem filhos desta mesma elite.

Após a Semana, as artes brasileiras seguiram as principais tendências na França, da Escola de Paris e do assim chamado retorno à ordem, tendência de reconstrução da arte de acordo com padrões universais clássicos, em vigência após o término da Primeira Grande Guerra. Atentem neste núcleo para os cadernos de desenho de Anita, a sua relação com o desenho de Victor Brecheret e deste com as formas orgânicas de Brancusi, e os desdobramentos desta relação na formulação das imagens de Tarsila da Amaral, em sua fase antropofágica.

A relação da arte brasileira com o Brasil profundo, primitivo, das tradições e culturas dos povos originários se deu através do trabalho de pesquisa etnológica de Mário de Andrade, por um lado, e das apropriações estéticas feitas pela Antropofagia, por outro.

A partir do início da década de 1930, a arte e a poesia brasileira serão alimentadas pelas vertentes do surrealismo europeu e quase imediatamente à expressão das idiossincrasias de cada artista se dará a preocupação em se fazer uma arte política e socialmente interessada.

A exposição termina com a melancolia de Mário de Andrade em função dos rumos que os diversos caminhos abertos pelos modernistas sendo conformados e divulgados a partir de uma retórica estatal (no caso a do ultra direitista Estado Novo de Getúlio Vargas) que cooptou todas as experiências, conflitos e dúvidas a respeito do que era o moderno, colocando-as sob a tutela de uma política ufanista e desenvolvimentista. A última carta escrita por Mário para Manuel Bandeira em 1944 é uma demonstração ao mesmo tempo de amor e de desencanto pelo Brasil de então.

Emma Voss, 1910 ou 1911

Emma Voss

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Em seu autorretrato (datado de 1910 ou 1911) que pertence hoje ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo podemos observar o rosto da artista, ainda jovem, a três quartos, olhando-nos de soslaio da direita para a esquerda (enquanto o movimento da cabeça gira em sentido contrário); o seu ar é altivo, as proporções são corretas, assim como a sugestão de luzes e sombras.

Não há um centímetro sequer da pintura que revele tibieza ou indecisão. O fundo do quadro é construído a partir da justaposição de tonalidades que se repetem no colo, no rosto e nos cabelos: lembra-nos um pouco as pinturas impressionistas de Max Liebermann ou de Max Slevogt, que a artista, talvez, tenha conhecido. A sua figura é construída com pinceladas curtas e enérgicas, demonstrando uma preocupação com o modelado da figura a partir das sobreposições de diversas camadas de tinta. Tudo é tratado por uma fatura espessa e uma gestualidade expedita do pincel.

Nesse retrato, dissolve-se por certo o lugar-comum do “temperamento habitual feminino” referido pelo crítico do Estado de São Paulo à época em que foi pela primeira vez exibido.

Se não se pode ainda considerá-la uma pintura expressionista, também não é possível classificá-la como um trabalho puramente impressionista. A sua posição – nesta pintura, pelo menos – aponta para experiências derivadas do pós-impressionismo, por exemplo, para a primeira pintura de Cézanne, como também para a de Van Gogh, assim como para os trabalhos de outros artistas que não mais se satisfizeram em tão somente imitar os efeitos luminosos rebatidos nas superfícies das coisas, como no caso do impressionismo, ou pelo uso de técnicas de divisão das cores por meio das pinceladas, como no divisionismo.

Anita Malfatti – Torso de Homem, 1912

Anita Malfatti

A pintura intitulada Academia/Torso de homem, de 1912 (acervo do Museu de Arte Brasileira da FAAP/SP), que esteve presente na exposição de 1914, retrata uma figura masculina de braços cruzados, de perfil e em meio-torso.

Ela possui uma fatura demarcada e espessa, num trabalho que usa da dominância cromática em toda a tela, como nos trabalhos de Bichoff-Culm, um de seus professores na Alemanha.

Antes de retornar ao Brasil, Anita visitou em meados de 1912 a grande exposição Sonderbund, em Colônia, considerada até então a maior e a mais significativa mostra de arte moderna já realizada, com cerca de seiscentas obras de artistas de diversas partes da Europa: Van Gogh, Cézanne, Matisse, Gauguin, Maurice Denis, Bonnard, Vuillard, Maillol, Braque, Mondrian, Kokoschka, Kandinsky tiveram obras expostas ali, além de muitos outros.

Anita Malfatti – Viagem aos Estados Unidos

Anita Malfatti

Anita partiu novamente para o exterior, dessa vez para os Estados Unidos (a guerra já havia começado na Europa), financiada novamente pelo tio, Jorge Krug, uma vez que havia malogrado a chance da bolsa pelo pensionato artístico paulista.

No final de 1914, Anita partiu em companhia de “uma senhora americana” num navio inglês camuflado, “sempre perseguido pelos torpedeiros alemães”. Em janeiro de 1915, já se encontrava em Nova York, estabelecendo-se numa pensão no West Side. Matriculou-se na Liga de Estudantes de Arte (Art Students League), fundada em 1875, que recebia tanto amadores quanto artistas profissionais em busca de treinamento ou aperfeiçoamento no desenho, na gravura e na pintura. O lema do lugar era “no day whithout a line” (“nenhum dia sem uma linha”).

Anita permaneceu apenas alguns meses nessa escola, mudando-se depois para a Independent Art School, dirigida por Homer Boss (1886-1952), influenciada pela indicação feita por uma colega que conhecera na Liga. Nova York era vista como a capital do novo, atraindo os movimentos mais recentes na política e nas ideias progressistas, na reforma social, na arquitetura moderna. O edifício Woolworth era inaugurado como o arranha-céu mais alto do mundo. As mulheres marcharam pelas ruas pelo direito ao sufrágio feminino e os trabalhadores faziam greves protestando por melhores e mais justas condições de trabalho.

O Greenwich Village se tornou o novo bairro boêmio, atraindo intelectuais, escritores e artistas. Nova York fervilhava de novas ideias. Marcel Duchamp (1887-1968), que havia sido um dos fundadores e participantes do grupo modernista francês Section D’Or (ou Groupe de Puteaux), havia escandalizado a todos no Armory Show com seu principal trabalho da fase futurista, o Nu Descendo a escada n. 2, ou “uma imagem estática do movimento”, como o próprio artista o definiu.

Anita, que o conheceu pessoalmente, ficou encantada com o belo moço – “o bonito Marcel Duchamp, que pintava sobre enormes placas de vidro”, lembrou ela, referindo-se à preparação da parte superior La Mariée, do célebre O grande vidro, no qual já trabalhava naquele ano.

Além de Duchamp, Anita conheceu e se aproximou de muitas outras pessoas, artistas, músicos e poetas como Juan Gris, Máximo Górki, Leon Bakst, e Isadora Duncan, mas o que parece ter sido o denominador comum em todos os desdobramentos das inúmeras posições que ali se encontravam, e que impressionou positivamente Anita, era a absoluta liberdade de criação para se fazer o que se quisesse.

Anita Malfatti – Estudo de Homem, 1915/1916

Anita Malfatti

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Obra de Anita Malfatti realizada entre os anos de 1915 e 1916, feita em carvão e pastel sobre papel. Ela tem 62 centímetros de altura por 47 centímetros de largura.

A obra mostra um homem nu, de costas, com o corpo musculoso e o rosto de perfil, virado para a esquerda. O homem tem cabelos curtos e pretos. A mão esquerda está apoiada na cintura e a direita está esticada para baixo e um pouco afastada do corpo. Ao fundo, há formas esverdeadas que se assemelham a árvores e folhas.

O corpo do homem tem uma tonalidade bege que se mistura com o preto dos contornos e os verdes do fundo. O sombreado dá volume à figura. Ele está em uma postura de quem posa, diante de uma floresta, ou uma mata, que é composta por traços simples e pouco definidos.

Uma característica marcante desta obra é a economia de traços utilizados pela artista. Os traços pretos do contorno do corpo do homem são grossos e feitos com carvão. Há algo de rudimentar em sua aparência, evidenciado pelo corpo entroncado e a falta de detalhes, principalmente no rosto e nas mãos.

Anita Malfatti: Diário de 1914-1917

A mostra intitulada Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti abriu numa quarta-feira, dia 12 de dezembro de 1917, na rua Líbero Badaró, 111 (mesmo lugar onde fora realizada a exposição do Saci).

O vernissage foi muito concorrido, contando com a presença dos artistas George Fischer Elpons, Zadig, Wasth Rodrigues, o arquiteto Victor Dubugras, de Di Cavalcanti e Oswald de Andrade, e dos seus familiares da artista, incluindo o tio Jorge Krug.

Cinco dias após a abertura, o presidente Altino Arantes (que seria hoje o equivalente ao governador do Estado de São Paulo) compareceu e até mesmo Freitas Valle fez uma visita. A imprensa foi cordial. O articulista do Correio Paulistano, por exemplo, fez um artigo bem extenso sobre a exposição e no todo, elogioso, porquanto demonstrou o interesse em compreender o que estava ali exposto, embora alertasse aos leitores tratar-se de uma exposição “toda ela de arte moderna”, apresentando um “aspecto original e bizarro”, tanto em relação à montagem da exposição como em relação ao tratamento dos motivos dados a cada quadro. A partir daí, comenta algumas das obras presentes, enfatizando tratar-se de uma artista que “se distancia consideravelmente dos métodos clássicos”.

O tom respeitoso da imprensa, contudo, mudaria, depois do artigo escrito por Monteiro Lobato, em 20 de dezembro de 1917, texto que mais tarde ficaria conhecido pelo título "Paranoia ou mistificação".

Anita Malfatti

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Pinturas de Anita Malfatti realizadas em Monhegan, no Maine, nos Estados Unidos, como O farol, A ventania ou A onda, têm uma orientação bem particular em relação ao restante de sua produção, incluindo os trabalhos produzidos nesses mesmos anos em Nova York.

A obra de Van Gogh (da sua fase em Aix-en-Provence), dos fauves franceses, assim como dos pintores norte-americanos George Bellows e Robert Henri são as referências mais próximas para servir de contraponto a estas obras, embora, em geral, tenham sido genericamente entendidas como exemplos da arte expressionista. Essas pinturas são feitas com pinceladas fortes e uma gestualidade solta sem preocupação com a representação verossímil da paisagem. As cores são cruas, quase sem mesclas para a modelação das tonalidades. A artista parece ter desejado captar a energia do lugar do modo mais direto possível, assimilando pela fatura pictórica a violência do jogo dos elementos naturais, o vento, a água, a terra: “Eram telas e telas. Era a tormenta, era o farol, eram as casinhas dos pescadores escorregando pelos morros, eram paisagens circulares, o sol e a lua e o mar”, diria a artista sobre essa temporada. Em seu diário de 1914 há pequenos esboços a lápis que acreditamos ter relação com as paisagens feitas em Monhegan.

Anita viveu ali um dos seus períodos mais intensos como pintora, longe de tudo, longe das convenções, cercada de amigos e de artistas como ela. Foi como estar numa grande festa: “a festa da luz e a festa da cor”.

O Homem Amarelo (Anita Malfatti), 1915/1916

Anita Malfatti

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O Homem Amarelo

Uma das principais obras de Anita Malfatti, produzida entre os anos de 1915 e 1916, e pintada com tinta óleo sobre tela de 62 centímetros de altura por 51 centímetros de largura.

Na composição há um predomínio de tons terrosos e cores quentes, onde o laranja e o amarelo se destacam.

O retrato apresenta um homem da cintura para cima, sentado e meio desajeitado, como se estivesse mal acomodado em uma cadeira. O cotovelo direito é amparado por um apoio lateral. O corpo é levemente retorcido. Ele veste paletó marrom, camisa branca e gravata com listras verticais em bege e preto. A lapela do paletó está desarrumada e a gravata encurvada. As mãos, braço e parte do ombro direito, assim como o topo da cabeça da figura, rompem o enquadramento, o que intensifica a sensação de desajuste.

O homem tem a pele amarelada, os cabelos pretos e curtos, os olhos grandes, as sobrancelhas finas, levemente arqueadas e o nariz agudo. Os lábios vermelhos e finos. As bochechas estão levemente enrubescidas e uma sombra ao redor da boca dá a impressão de uma barba rala.

Os traços que formam o rosto são econômicos, duros e fortemente pronunciados.

Todos os elementos que compõem essa obra, que se tornou uma das principais do modernismo brasileiro, exposta pela primeira vez em 1917 e que também participou da Semana de Arte Moderna de 1922, sugerem uma sensação de desconforto e desalento. Segundo a própria artista, o Homem Amarelo é o retrato de um pobre imigrante italiano que se ofereceu para ser pintado por algum dinheiro. Anita achou que o homem tinha uma "expressão desesperada".

A Estudante Russa (Anita Malfatti), 1915

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A Estudante Russa é uma obra de Anita Malfatti de 1915. É uma pintura em óleo sobre tela que tem 76 centímetros de altura por 61 centímetros de largura.

A pintura se compõe por um fundo azul, com pinceladas de cinza e ocre, de onde se destaca a figura central de uma mulher.

A estudante é retratada sentada em uma cadeira vermelha que tem um suporte para estudo no braço direito. Suas duas mãos estão apoiadas nesse suporte, sendo a mão esquerda sobre a mão direita. Por essa razão, seu corpo está levemente inclinado para a direita.

Ela usa um vestido de mangas compridas marrom, com tons azulados e esverdeados. Os cabelos são escuros e ondulados, cortados na altura de suas bochechas rosadas. Sua pele tem uma tonalidade bege clara que se mistura com tons acinzentados das pinceladas da artista. As sobrancelhas finas e arqueadas marcam a expressão da figura e formam uma linha contínua com o nariz. O rosto arredondado se completa por seus olhos de pupilas negras e fixas, por uma boca pequena, de lábios grossos e avermelhados e por um queixo também pequeno mas proeminente.

O vestido marrom é simples e não tem nenhum detalhe, apenas parece amarrotado. Os olhos da estudante estão com as pupilas voltadas para a direita e levemente para baixo, como se a estudante estivesse em reflexão. Seu rosto sério e olhar distante também sugerem essa interpretação.

Anita Mafatti – A Estudante Russa

Anita Malfatti

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A Estudante Russa está plantada em sua cadeira como se fossem, moça e móvel, uma figura só. As cores que constroem o seu rosto e o seu colo se repetem, como que irradiadas para o fundo e para o entorno da figura.

Há um sentimento de pausa e de melancolia obtido pelos ocres, azuis, vermelhos e verdes, assim como pelo aspecto sujo da pintura diluída ou raspada ao fundo. O desenho submerge entre as camadas de cor, mas é possível ainda vê-lo parcialmente, fixado como contorno de partes da figura em tom enegrecido acastanhado.

Desse modo, a pintora consegue plantar a figura da estudante no plano frontal ao espectador, apenas sugerindo um fundo que se dissolve lá atrás, a partir dos cabelos da moça.

O método, contudo, é bem diverso do utilizado pela pintura impressionista, e a sobriedade no uso das cores também a fazem divergir da pintura expressionista.

A pose da moça lembra algo do Retrato de Gertrude Stein, embora a pintura de Anita seja menos sólida e indicie menos os volumes. A fatura da Estudante também é mais rarefeita, como dissemos, deixando entrever o fundo da tela em algumas zonas. Isso pode sugerir que esta tela, assim como outras da fase nova iorquina, estivesse ainda sendo trabalhada, ou fosse um work in progress, uma obra inacabada.

Anita Mafatti – Retrato de Lalive, 1917

Em Lalive (1917), Anita aproxima-se do método de rarefazer as pinceladas nas mesmas escalas tonais, típico da maneira da pintora impressionista Berthe Morisot, fazendo a figura emergir suavemente do fundo, com as sombras se dissolvendo em meio aos brancos, rosas e lilases.

Olhando para a exposição de 1917 como um todo, é possível observar uma mistura de posições, cujo denominador comum é a experimentação com estilos e movimentos que surgiram depois do Impressionismo. Anita estava aparentemente buscando explorar as inúmeras possibilidades oferecidas pela arte moderna, mostrando ao mesmo tempo o seu conhecimento e desenvoltura em relação às novas escolas, em especial àquilo que ela viu e provou em Berlim, Colônia e Nova York, ao mesmo tempo que buscava se atualizar em relação ao gosto do público brasileiro.

Marcel Duchamp e Anita Malfatti, 1910

Marcel Duchamp e Anita Malfatti

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No Retrato do dr. Dumouchel, de 1910 (coleção do Museu de Arte da Philadelphia) Marcel Duchamp buscou novas formas de amplificação da potência visível com o auxílio dos raios-X.

Dumouchel, que havia sido seu amigo de liceu, na França, é retratado de perfil, com pouco mais de meio corpo, olhando da direita para a esquerda, com a mão esquerda aberta e os dedos espalmados. Há dois halos de cor à volta da mão, um em tom vermelho, e outro, rosa, assim como uma auréola de cor avermelhada em torno de toda a figura, contrastando com seu paletó verde. Esses halos representam a radiação dos raios X, invenção descoberta em 1895, e que imediatamente atiçou a imaginação de muitos artistas modernos.

As pinturas e os desenhos (pastéis) de Anita desse período revelam algo muito parecido em termos de estrutura formal e cromática, embora a artista nunca tenha tido interesse por teorias científicas. O que fez, fez de modo intuitivo, experimentando possibilidades de composição com formas e cores em consonância com aquilo que via ao seu redor – em especial, os trabalhos dos artistas que admirava.

Em geral, nos trabalhos desse período, é como se a cor da figura, que intencionalmente não corresponde a do modelo real, se espalhasse para o fundo, que passa a vibrar na mesma intensidade, trazendo, às vezes, repetições de partes dos traços que delineia, como se fossem um palimpsesto a sugerir uma nova composição a partir da composição primária. O desenho, que está na base da formulação do quadro, emerge junto com a cor, deixando ver, muitas vezes, a sua estrutura rudimentar.

Anita explicou mais tarde que entendia todos esses trabalhos produzidos nos Estados Unidos como estudos apenas. O seu diário mostra uma mocinha vaidosa, ainda muito apegada ao meio familiar e às convenções sociais de seu grupo. Mas mostra também uma artista que sabia se posicionar desde que lhe fosse aberta uma direção.

Crítica de Monteiro Lobato – Paranóia ou Mistificação, 1917

Monteiro Lobato

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Lenbach na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vão engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros.

A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento, embora eles se deem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto lógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.

Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós sentimos; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que nosso cérebro esteja em ‘pane’ por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá ‘sentir’ senão um gato, e é falsa a ‘interpretação que do bichano fizer um totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.

Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de que sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e sub intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos. Arte moderna, eis o escudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moderna. Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso ‘virtuose’ do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da dry point que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.

Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra-prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de referência. Tenhamos coragem de não ser pedante: aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passar na tela às pontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu tempo, visto que o resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no traseiro voltado numa tela. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mistificadores como verdadeira obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado.

A pintura da Sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalgaduras, a corte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Steves, de Velásquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou vice-versa. Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de setembro, de Chabas, e o carvão cubista do sr. Bolynson [sic]. Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o formoso talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis. Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim aquele que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz somente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na sra. Malfatti apenas uma ‘moça que pinta’, como há centenas por aí, sem denunciar centelha de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos ‘bombons’ que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque eles pensam deste modo... por trás.

Monteiro Lobato, “A propósito da exposição Malfatti”, O Estado de São Paulo, 20 de dezembro de 1917

Anita Mafatti e a pintura nacionalista

Anita Malfatti

Nos dois anos que se seguiram à exposição de 1917/1918, Anita se recolheu. Passou a frequentar as aulas de desenho de Pedro Alexandrino (1856-1942), que havia se estabelecido como um pintor de naturezas-mortas, especializado em “fazer brilhar o metal reluzente à luz vibrante do sol”. A sua técnica, aprendida com Vollon na França, cativava o público paulista desde 1904, rendendo em 1918 um artigo elogioso do temido Monteiro Lobato, que o viu, a exemplo de Almeida Jr, um pintor honesto, sem truques, que representou dignamente a arte brasileira, além de uma referência aos jovens pintores.

Entre as alunas que frequentavam as aulas do digníssimo pintor encontrava-se Tarsila do Amaral, que logo recomenda que Anita passe a frequentar as aulas de desenho vivo e de pintura de George-Fischer Elpons (1865-1939), pintor alemão que chegou ao Brasil em 1913 para participar de uma expedição ao Amazonas. Ele conheceu Anita na exposição de 1917/1918, viu os seus trabalhos e os admirou. Sob uma orientação de viés mais acadêmico ou pós-naturalista, entre 1918 e 1920 Anita aprofunda nesses anos seu interesse por uma pintura de motivos nacionalistas, que, contudo, já a interessava logo após o seu retorno ao Brasil, em 1916. Anita havia produzido neste ano telas como A palmeira, Rancho de sapé, Capanga, Caboclinha, além de Negra baiana (rebatizado depois de Tropical), apresentados na exposição de 1917, embora nem sequer tenham merecido a atenção de Monteiro Lobato em seu demolidor artigo.

Em especial, esta última obra, Tropical (atualmente no acervo da Pinacoteca do Estado) demonstra uma tentativa de realizar uma imagem híbrida: as figuras da negra e das palmeiras ao fundo trazem as deformações típicas da arte moderna, mas as frutas no primeiro plano são tratadas por técnica naturalista, aspecto que, aliás, chamou a atenção de Rangel Pestana que repreendeu novamente a jovem pintora por trazer uma pintura com “uma anatomia teratológica” ao lado de “abacaxis tão bem desenhados”.

Mãe e Filho (Wilhelm Haarberg)

Wilhelm Haarberg

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A escultura em madeira feita por Wilhelm Haarberg, em data não determinada, tem 31 centímetros de altura, com uma base quadrada de 14 por 14 centímetros.

A escultura representa uma mulher sentada, olhando para baixo, com seu filho bebê deitado entre suas pernas. A escultura é toda feita em uma única e sólida peça de madeira marrom escura esculpida e envernizada, o que lhe confere certo brilho.

A mãe está sentada sobre algo que parece ser um pequeno banco, a cabeça está completamente voltada para baixo, na direção da criança. A mulher tem os cabelos lisos e curtos, penteados para trás. Não se pode identificar detalhes de sua feição, mas ela parece séria.

A mãe tem os braços esticados ao longo do corpo, em direção às pernas e seios pequenos e achatados. As pernas estão levemente abertas e o vestido longo, que fica mais visível nessa parte do corpo, forma uma base curva onde repousa o bebê. É possível perceber que as mãos dela também amparam a criança.

Na base da escultura as pontas dos pés calçados, que despontam da barra do longo vestido, são aparentes.

Menotti del Picchia: na maré das reformas, 1921

Menotti del Picchia

Em certas etapas da vida mental do mundo, o stock de ideias, de doutrinas, de processos técnicos velhos e vistos entra em liquidação. E uma nova série de mercadorias espirituais, de criação fresca, é exposta à avidez dos consumidores.

Assim, ao classicismo sobreviveu o romantismo, a este o realismo, a este ainda sucederam-se o neorromantismo, o simbolismo, o ecletismo, frutos já chocados dessa mistura do passado rançoso, que está a enfarar e a entediar.

Os mamutes literários, os megatérios da poesia, as renas da crítica, fauna primitiva e anacrônica, entram para o museu arqueológico das resenhas e da história da nossa literatura. São curiosos e têm o valor insigne de assinalarem uma época. [...] Toda a indumentária lírica ou prosaica que aberra dos últimos figurinos talhados pelos realizadores originais e revolucionários passa, mofada, por arcas do obsoleto, como passaram os quintos netos dos dramalhões de antanho, os modismos arcádicos, os torcicolos parnasianos, as longas páginas descritivas dos romances de Zola.

[...] Tudo se transmuda numa simplicidade sintética e empolgante, flagrante de emoção e de dinamismo, objetivada com uma visão mais precisa e íntegra das coisas e da existência, mais representativa e impressionante. A vida, multiforme e absorvente, maravilhosa na sua complexidade, violenta na sua tragédia e na vertigem, a vida séc. XX, com fábricas e bolchevismo, como sangue inda quente derramado no holocausto da grande guerra, pede outra técnica, outra expressão verbal para a sua extrinsecação artística.

[...] A liquidação literária, no Brasil, assume proporção de queima. Raramente tivemos personalidade. Euclides, Machado, dois ou três cumes da cordilheira de picos escassos, salvam-se nesse amontoado incolor de ‘pastiches’ ecianos, camilianos, franceses, sobretudo, franceses. [...] É preciso reagir. É preciso esfacelarem-se os velhos e rançosos moldes literários, reformar-se a técnica, arejar-se o pensamento surrado no eterno uso das mesmas imagens. A vida não para e a arte é vida. Mostremos, afinal, que no Brasil não somos uns misoneístas faquirizados, abobados em asceses retrospectivas, nem um montão inerte e inútil de cadáveres.

Menotti del Picchia, “Na maré das reformas”, Correio Paulistano, 24 de janeiro de 1921

Entrevista com Oswald de Andrade, 1921

Oswald de Andrade

Em 18 de outubro de 1921, a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro publicou uma palestra (entrevista) de Oswald de Andrade sobre “O momento literário paulista”, no qual manifestava novamente, e de uma maneira mais clara do que no artigo sobre o banquete em homenagem a Menotti del Picchia, os fundamentos de seu “futurismo paulista”. Esse texto, na verdade, intencionava ter valor de manifesto, talvez buscando também agremiar os poetas, artistas e intelectuais que viviam então na capital. Oswald organizou uma viagem dos modernistas ao Rio com esse propósito, levando consigo o manuscrito do romance Os condenados para ser lido na casa do poeta e diplomata pernambucano Olegário Mariano. A palestra de Oswald iniciava com a legenda – “Fala-nos o escritor e jornalista Oswald de Andrade”:

"Achando-se nesta capital o nosso colega de imprensa paulista Oswald de Andrade, tivemos com ele uma interessante palestra sobre o movimento literário do grande Estado. Oswald de Andrade é um dos espíritos mais fulgurantes da nova geração, sendo atualmente um dos melhores romancistas do nosso país. Em S. Paulo é justamente considerado como um dos chefes do movimento intelectual que ali se opera, dando a todo o Brasil um exemplo notável de atividade mental.

As edições multiplicaram-se em S. Paulo, lançam-se nomes, fazem-se reputações e promovem-se campanhas. Oswald de Andrade coloca-se no chamado grupo do futurismo paulista. A esse respeito nos disse o brilhante escritor, ao iniciar a agradável tertúlia conosco: – Não é um grupo ortodoxamente ligado ao futurismo italiano. [...] Formam a vanguarda livre do pensamento do vizinho Estado. Não aceitam as extravagâncias teóricas do Marinetismo nem se ligam aos dadaístas ultraístas e demais paradoxistas da literatura internacional. Conhecendo perfeitamente o dia a dia literário do novo século, sabem que de 1900 para cá, nos países de história intelectual, se vem produzindo uma vigorosa reação aos anteriores decadismos. [...] A literatura do novo século, naturalmente desigual nos diversos países, liga-se, entretanto, por uma idêntica afirmação da força lírica e uma igual ambição espiritualista."

Primeiramente, Oswald faz questão de frisar a diferença entre o futurismo paulista do futurismo italiano. O movimento de poetas e escritores paulistas não compartilhava das ideias extravagantes de Marinetti, assim como também não se identificava com a atitude antiliterária do dadaísmo ou, muito menos, filiados às ideias bolchevistas, consideradas extremas. Mais que tudo, Oswald faz questão de demonstrar aos cariocas o quanto estava bem informado sobre o que se passava nos “países de história intelectual”, demonstrando como São Paulo atualizava-se em relação às correntes estéticas mais atuais ou mais promissoras naquele momento.

Carta de Manuel Bandeira para Mário de Andrade -10 out. 1925, 1925

Manuel Bandeira

Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1925.

Mário.

Antes de mais nada: me lembro de ter visto num relatório de comissão da Academia alguma coisa, um comentário sobre ‘O luar na alameda’. Pode ser que me engane – é uma reminiscência muito vaga que me veio à cabeça quando vi o título do seu caderno. Foi numa Revista da Academia que li por cima em casa de alguém. Onde? Não me recordo. Você sabe de alguma coisa nesse sentido?

Achei os versos muito ruins, mas tive pena que você não os tivesse publicado em tempo. Agora está impublicável. Apesar de que, acho estes versos melhores do que Há uma gota de sangue. Como você era romântico atrapalhado pelo parnaso e ainda por cima com infiltrações simbolistas está melhor neste lirismo pessoal do que no anedotário grandeguerrístico do outro livro.

Você tem fundo romântico, mas este romantismo aqui é romantismo de puberdade. A puberdade estado de alma ficou em você até depois dos 20 anos, puxa! Eu também fiz versos assim, mas foi até 15 anos. Engraçado: fiz versos a um ipê também! A sua evolução é a coisa mais extraordinária que eu conheço. Lembro-me muito bem de ter ouvido você dizer em casa de Ronald: ‘Aos 23 eu era burro, burro! Mas de uma burrice incrível!’ Não sei que idade você tinha quando fez estes versos, mas sabe que impressão eles me dão? O de um rapaz de seus 15, 16 anos que não trepou, com uma bruta ternura mas por ser feio acreditando que as pequenas não fazem caso dele, só lendo Varela, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães e tudo isso nalguma cidade de Minas [...]

Fui reler a carta e achei infiel a expressão. A impressão muito ruim é do livro em bloco; cada uma das coisas que você não riscou não é muito ruim, mas não é bom - é uma sensação aporrinhante, a gente preferia que aquilo não existisse, porque não sendo bom, não é inteiramente ruim... Enfim um buraco. Do meu próprio guaguejo você conclui. Fico, porém, firme em que você não deve publicar.

S.E.O.

Ciao.

M.

P.S. Tenho apreciado muito os mineiros. Me escrevem umas cartas tão simples, tão naturais, sem nenhuma literatura. Como são diferentes dos modernistas pernambucanos! Puxa, que modernismo passadista! Um modernismo perfeitamente Martins Fontes! Viva os mineiros tão simpáticos.

Idem, ibidem, pp. 247-8

Graça Aranha

No dia 22 de outubro, data da crônica de Hélios, desembarcava no Rio, vindo da França, outro personagem fundamental para a defesa e disseminação das ideias do novo grupo futurista ou modernista de São Paulo – o influente escritor e diplomata brasileiro Graça Aranha. Graça havia conquistado muita admiração pelo seu romance Canaã, que misturava elementos do romantismo e do naturalismo ao abordar a imigração alemã no Espírito Santo, a violência do meio rural e o sentimento de desajuste e deslocamento de quem se vê obrigado a deixar a sua própria terra. No entanto, esse tema não fizera tanto a cabeça dos modernistas quanto as ideias de Graça Aranha, a respeito da necessidade de se reconhecer o país em sua arte, bem como a sua posição política e social. Ele possuía uma estatura intelectual e moral capaz de fazer um Monteiro Lobato, por exemplo, recolher as suas armas. Graça havia acabado de lançar também um livro de estética, com as suas ideias filosóficas para a vida e para a arte. Houve um banquete em recepção ao eminente escritor no Palace Hotel do Rio, com a presença de embaixadores, artistas e escritores. Ronald de Carvalho também participou. Logo em seguida, Graça Aranha embarcaria para São Paulo para encontrar seu amigo Paulo Prado e a “mocidade literária e artística” paulista, que desejava muito conhecer. Di Cavalcanti fazia uma exposição na livraria de Jacinto Silva, que então intermediou um encontro entre os dois. Graça compareceu ao salão da livraria onde Di já o esperava, acompanhado de Oswald, Mário, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Alguns dias depois, o nobre visitante receberia o grupo (e mais Anita Malfatti, acompanhada de uma amiga) no local onde se hospedava quando vinha à São Paulo, um confortável apartamento no Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman (o Edifício Matarazzo, onde hoje é a sede da prefeitura de São Paulo), o mais requintado da cidade à época. Antes de retornar ao Rio, Graça entregou a Di Cavalcanti um cartão de apresentação com uma recomendação a Paulo Prado. Em seu livro de memórias intitulado Viagem da minha vida, publicado em 1955, Di declararia que: “E fui eu, do grupo modernista, o primeiro a conhecer aquela figura nobre e elegante de civilizado paulista, educado pelo tio Eduardo Prado, por Eça de Queirós, amigo de Claudel, homem que conheceu Oscar Wilde, dançarinas do tempo de Degas e o próprio Degas”. A gestação da Semana de Arte Moderna começou aparentemente nesse encontro. Alguns dias depois, o encontro com Paulo Prado se realizou em sua casa, uma mansão em Higienópolis e foi Di Cavalcanti a expor a ideia de se realizar “uma grande manifestação de arte moderna”. No decorrer da conversa, chegaram à definição de que seria melhor delimitar o tempo dessa manifestação a uma semana. Essa sugestão partiu de Marinette, a companheira francesa de Paulo Prado, que teria mencionado como exemplo a semana de moda de Deauville, uma espécie de festividade da alta burguesia francesa, durante o verão, naquele balneário da Normandia.

O Terremoto, 1922

Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, um tremor de terra sacudiu São Paulo, Minas e Rio. Graça Aranha acordou ao mesmo tempo atordoado e maravilhado com o fenômeno – “É o Cosmos! O Cosmos!”, exclamaria ele na recepção do hotel em que estava hospedado.

O terremoto não trouxe danos materiais à cidade, mas atiçou o imaginário público, incluindo o dos modernistas. Menotti del Picchia e Oswald de Andrade, principalmente, o usariam como metáfora da transformação estética que desejam implementar com a Semana de Arte Moderna, mesmo que a arte futurista que preconizavam mantivesse laços com a tradição ou, na melhor das hipóteses, estivesse em consonância com o arrefecimento das vanguardas que se deu na Europa após o término da Primeira Guerra.

Menotti, por exemplo, lembra que, ao se colocar diante de um quadro de Anita Malfatti (um daqueles censurados por Monteiro Lobato em seu artigo de 1917) durante a primeira noite da Semana de Arte Moderna, a sra. Renata Crespi (casada com Fábio Prado, primo de Paulo Prado), não disfarçando o seu incômodo com a deformação na pintura, indagou-lhe: “Não estaria torto aquele retrato?”. Ao que ele lhe respondeu que a causa era que a pintura teria sido feita sob os efeitos daquele terremoto que os atingira alguns dias antes. “O senhor está brincando!”, teria replicado a distinta senhora.

Aquele terremoto em especial, nem tão destruidor, nem muito menos algo que passara despercebido, era a metáfora perfeita para a Semana de Arte Moderna, que esperava causar uma grande repercussão, sem, no entanto, destruir os esteios da tradição intelectual da elite paulista, à qual aqueles jovens pertenciam. Foi mais uma chacoalhada nas ideias empoeiradas ou repetidas meramente por acomodação por aqui, desde o final do século XIX. Essas ideias eram agora questionadas por jovens educados, com berço e boa educação, ilustradas sobre as últimas tendências que surgiam na Europa.

Ao mesmo tempo, conseguiram chamar a atenção do público se utilizando de um sentimento ufanista em relação a São Paulo, que tinha na sua principal atividade econômica a indústria cafeeira, o álibi perfeito para fazer a cidade figurar como o enclave cosmopolita do progresso material e, portanto, um ambiente propício ao desenvolvimento das artes modernas.

A Semana e suas obras

As obras apresentadas pelos artistas participantes (Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Rego Monteiro, Zina Aita, Hildegardo Veloso, Ferrignac, John Graz, Haarberg, Martins Ribeiro, Yan de Almeida Prado e Paim Vieira) situavam-se no terreno da tentativa de experimentação, dentro dos estilos ou características já documentadas das vanguardas, como cubismo, pontilhismo e outros.

Algumas obras foram feitas apenas por pilhéria ou gozação, sem quaisquer compromissos mais aprofundados (caso confesso dos dois desenhos de Yan de Almeida Prado). No geral, as obras expostas não traziam grandes novidades, e mesmo em relação a tão propalada arte moderna, eram em grande parte demonstrações tíbias de sua assimilação. Para Sérgio Milliet, crítico e poeta de boa reputação à época, e que viu a exposição, enquanto os demais artistas decepcionaram, John Graz, Brecheret e Anita Malfatti foram o ponto alto da mostra.

Em especial, no campo da pintura, o que havia de mais novo ainda eram as pinturas exibidas pela artista em sua mostra individual de 1917. Sobre o artista alemão William Haarberg, amigo de Mário de Andrade, Milliet apenas diria: “é um “escultor bastante jovem e a quem não falta talento”. Uma das peças de sua lavra, que constam no catálogo da exposição, Mãe e filho (coleção IEB/USP) é uma pequena escultura em madeira patinada. As figuras foram talhadas num único bloco com a posição da mãe curvada sobre o filho. A sua cabeça é enorme e lembra uma forma fetal. A face, inclinada para baixo, em direção ao seu colo, é visível apenas quando nos abaixamos um pouco. Lembra algumas das estilizações do escultor formado em Düsseldorf, depois radicado em Paris, Wilhelm Lehmbruck (1881-1919), e de Emil Nolde (1867-1956), do grupo de Dresden, A Ponte.

Di Cavalcanti

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Naquela época, Di Cavalcanti era um pintor de figuras que emergiram de fundos escuros, de ambientes sombrios. Às vezes, apenas nesgas do que desejava representar se davam à vista do espectador, efeito que levou Mário de Andrade a chamá-lo de “menestrel dos tons velados”.

Mais ligados à atmosfera do simbolismo, as obras de Di levadas ao Teatro Municipal ilustraram muito bem que os caminhos escolhidos pelos artistas brasileiros para representar o moderno nessa época eram contidos e cautelosos, apoiados em grande parte nas manifestações artísticas pisadas e repisadas do final do século XIX.

Di apresentou ainda uma série de desenhos concebidos como ilustrações para o livro Os fantoches da meia-noite, que traziam as referências, de Aubrey Beardsley, entre outras. Linhas sinuosas em figuras como que recortadas sobre um fundo sintético, elas revelavam ainda a permanência e a importância para o artista carioca do art nouveau.

Opinião sobre a Semana

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Paim Vieira, um dos artistas expositores, lembrou no depoimento ao MIS, em maio de 1971, que em sua conferência no saguão do Municipal, Mário de Andrade teria dito “que esses que estavam expondo naquele salão eram os clássicos do futuro”.

Eles não desejavam a destruição do sistema artístico, mas seu encarecimento a partir de obras que dialogassem com o seu meio e com o seu tempo. O moderno foi uma fímbria, uma pequena fissura no padrão de produção e recepção das obras artísticas que vinham então se desenvolvendo por aqui, e pouco a pouco foi amplificado pela imprensa e incensado por uma elite intelectual a posteriori, particularmente na década de 1960. Mas os modernos desconheciam eles mesmos o significado exato do termo no momento em que se lançaram a defendê-lo. Concordavam com sinceridade numa coisa: não poderia ser simplesmente uma reedição do futurismo italiano de Marinetti ou de outra vanguarda qualquer.

Por isso seu sentido não estava dado a priori, mas foi se construindo à medida que as ações de seus promotores e as reações dos seus receptores foram sendo desencadeadas. No entanto, se não houvesse um evento para aglutinar essas ações, orquestrando-as como um movimento ou uma declaração estética coletiva, as obras e os artistas, sozinhos, dificilmente teriam obtido alguma ressonância, particularmente num contexto cultural conservador e assertivo quanto às suas posições de gosto.

A experiência de Anita Malfatti, cinco anos antes da Semana de Arte Moderna, demonstrou que a estratégia, como dizia Di Cavalcanti, de se fazer uma “exposiçãozinha”, não funcionava. O sistema estava pronto para lançar as classificações rotineiras, tanto para o que era considerado bom quanto para o que era mau. Então, nesse sentido, por mais que a Semana tenha tido seus contratempos de organização, nervosismos de estreia, medos de enfrentamento e oposições possivelmente orquestradas para a mobilização de um público curioso, porém apático em sua cordialidade à francesa, foi o seu caráter, enquanto diapasão da discórdia, de fundamental importância para a demarcação de um campo novo no qual seriam construídas as muitas histórias de nossos modernismos em diversas frentes, ali simbolicamente abertas.

A Escola de Paris

Depois da guerra, muitos artistas que haviam se refugiado em outros países, como Duchamp e Francis Picabia (que foram para Nova York), ou Tristan Tzara (que ficou na Suíça), retornaram a Paris.

As experiências de vanguarda iniciadas no início do século, como o dadaísmo, tiveram algumas recidivas ou foram desdobradas e adaptadas aos novos tempos, como o cubismo. O grupo Dada atuou em Paris, realizando os seus meetings e performances artísticas em 1920 e 1921, principalmente, dissolvendo-se em 1923. No ano seguinte, alguns de seus ex-integrantes, liderados por André Breton, dariam a largada ao surrealismo, ao qual até mesmo Picasso, durante um período breve, aderiria. A França era então uma espécie de pátria cosmopolita para artistas do mundo todo, incluindo os brasileiros recém-chegados, que logo se adaptaram ao caráter eclético e internacional do que se produzia em termos de arte moderna ali.

Esse estilo, formado na verdade de diversos estilos ou partes deles, combinando maneiras e fórmulas provenientes dos movimentos e das experiências artísticas modernas, desde o início do século, foi genericamente chamado de Escola de Paris. O escritor, desenhista e crítico de arte André Warnod foi o primeiro a utilizar o termo em seu livro Les berceaux de la jeune peinture; L’École de Paris (tendo capa ilustrada por um desenho de Modigliani). Em seu prefácio, Warnod proclamava: “A Escola de Paris existe. Mais tarde, os historiadores da arte poderão, melhor do que nós, definir o caráter e estudar os elementos que a compõem; mas podemos sempre afirmar sua existência e sua força atrativa que faz vir aqui os artistas do mundo inteiro”.

Era como um grande menu no qual os artistas em formação ou em busca de aprimoramento podiam escolher, tomando a direção que melhor se adequasse ao seu temperamento ou à demanda social de seu público. Muitos artistas fizeram fama, e poucos obtiveram retorno financeiro satisfatório com a venda de suas obras para o público burguês que, no entanto, não se espantava mais com as extravagâncias e as ousadias da arte moderna.

Os artistas haviam, por seu turno, compreendido o que era preciso fazer, atenuando o radicalismo experimental que quase levou, antes da guerra, à abolição integral das próprias noções de obra de arte e de artista, tornando-as dispensáveis. Esse recuo, como vimos, foi chamado de “retorno à ordem”. Um censo feito em meados dos anos 1920 dava conta de cerca de quarenta mil artistas vivendo e trabalhando em Paris.

Retorno à ordem

Com o término da Primeira Grande Guerra, houve um período, entre 1918 e 1925, mais ou menos, que demarcava uma revisão de viés conservador nas principais vertentes modernas, já desmobilizadas de seus manifestos ou condições originais de surgimento, e se contrapondo principalmente àquelas que pregavam a destruição e a guerra.

Essa revisão foi chamada de “Retorno à ordem” (Cocteau o chamaria de rappel à l’ordre), e teve como denominador comum a retomada do classicismo, particularmente na França, que reclama ser a principal guardiã, nesse momento, da civilização clássica, do seu passado e da sua cultura, em oposição à barbárie alemã.

Em 1918, por exemplo, Amadeo Ozenfant e Le Corbusier assinaram o manifesto do Purismo, lançando logo em seguida aquela que seria a principal publicação modernista do pós-guerra: a revista L’Esprit Nouveau, a qual unia artes, artes aplicadas, arquitetura, literatura, filosofia e sociologia.

Na Itália, o futurismo era suplantado pelas diretivas do movimento Novecento, fundado por Anselmo Bucci, Achille Funi, Mario Sironi e outros. Seu principal veículo era a revista Valori plastici, que foi editada entre 1918 e 1922. Em 1919, Giorgio De Chirico (1888-1978), um de seus colaboradores, chamava a sua pintura de “Metafísica” (depois de ter lido a filosofia de Nietzsche e de Schopenhauer), reclamando para si o epíteto em latim pictor classicus – ou seja, pintor clássico.

Anita Malfatti, - O interior de Mônaco

Entre toalha, bandó e papeis de parede floridos, abre-se uma porta atrás da qual aparece uma figura feminina, de costas, vestida num longo robe branco banhado pela luz azulada da manhã. O interior é tipicamente decorado conforme os padrões da belle époque burguesa, de início do século 20, embora seja bem modesto quanto ao mobiliário, com duas pequenas pinturas penduradas na parede.

Pintado em 1925, após quase dois anos da chegada de Anita à França e exposta no Salón des indépendents, em Paris, em 1926, esta tela reflete a assimilação pela artista de algumas das vertentes da arte europeia do pós-guerra, afeitas ao que se denominou de "retorno à ordem" e expressas na diversidade de posições da Escola de Paris.

Anita, após as infrutíferas experiências das três exposições individuais realizadas no Brasil, entre 1914 e 1921, já apresentava sinais de inclinação à mudança de direção, de uma pintura mais revolucionária ou de extrato cubo futurista quanto à expressão das formas e cores, para uma arte mais amainada em termos de figuração, mais palatável ao público. Em 1928, após seu retorno ao Brasil, ela diria a respeito de sua estadia na capital francesa: "os extremistas não têm mais lugar de destaque. As tendências modernas a que me referi representam correntes moderadas sem, contudo, deixar de ser caracteristicamente novas".

E embora a artista declare não ter seguido a ninguém durante essa nova fase, fica evidente, particularmente neste quadro, as referências às pinturas do grupo Les Nabis, em especial à Pierre Bonnard, Édouard Vuillard e Maurice Denis. Anita frequentou as aulas de Denis, possivelmente na Académie Ranson, em finais de 1923, a mesma que fora frequentada por Brecheret durante 1920.

Entretanto, em seu depoimento de 1928 a artista contemporizaria: "Não recebi influência de nenhum desses grandes nomes [...] frequentei as academias de cursos livres, visitei os ateliês, rebusquei nos salões o que se fazia de mais avançado [...] depois, mantive-me independente dentro do movimento da época. Aprofundei-me nos primitivos, aproveitei a sua técnica e a sua maneira simples e fortemente característica [...]".

O Interior de Mônaco suscitou uma crítica positiva no periódico francês Les Artistes d'Aujourd'hui, publicado em 15 de maio de 1926: "Son interieur est heuresement composé, les détails y sont traités largement avec un souci d'évocation plutôt que de copie, on sent que l'artiste a voulu, avant tout, recréer l'atmosphère, l'ambiance (O seu interior é muito bem composto, os detalhes são largamente tratados com uma preocupação de evocação e não de cópia, sentimos que a artista quis, acima de tudo, recriar a atmosfera, o ambiente)".

Grupo dos Cinco

Tarsila do Amaral retornou a São Paulo em junho de 1922 e logo foi apresentada ao grupo modernista por Anita Malfatti. Formava-se assim uma turma com Mário de Andrade, Oswald, Menotti de Picchia, Anita e Tarsila que se autoproclamou “O grupo dos cinco”.

As reuniões, cada vez mais frequentes, aconteciam na casa de Mário, de Anita ou no ateliê de Tarsila, à rua Vitória, no centro da cidade. Freitas Valle e Graça Aranha apareceram como convidados.

Conversavam, bebiam, dançavam e passeavam no Cadillac do Oswald. Segundo depoimento deixado por Mário de Andrade, sentiam-se: “Doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consumíamos, e nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer”. Anita nos deixou um registro desses encontros – um desenho aquarelado em chave de caricatura com o nome do Grupo. Numa sala, aparecem Oswald e Menotti deitados de paletó e sapatos num tapete com as cabeças apoiadas em almofadas. À direita, ao fundo, aparecem Mário e Tarsila, de costas, ombro a ombro, sentados ao piano e, à esquerda, Anita, desabada num sofá.

Começaria nessa época o interesse de Oswald por Tarsila (ainda casada com André Teixeira Pinto), e que também encantou Mário. Tarsila confessaria anos mais tarde: “Parece mentira, mas foi no Brasil que tomei contato com a arte moderna [...] e, estimulada pelos meus amigos pintei alguns quadros, onde minha exaltação se comprazia na violência do colorido".

As revistas modernistas

Em maio de 1922, o grupo formado por Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Luís Aranha e Rubens Borba de Moraes (Sérgio Buarque de Holanda seria o representante no Rio) lançava a revista Klaxon, “um mensário de arte moderna” com um formato novo para os padrões brasileiros, tanto do ponto de vista editorial quanto em relação ao seu aspecto gráfico.

O primeiro número (de um total de nove), publicado em 15 de maio, trazia os princípios do grupo num texto manifesto, típico das vanguardas, tentando corrigir e esclarecer muitas das ideias expostas durante a Semana.

Klaxon admitia como tese preliminar a assimilação de ideias estrangeiras (a própria revista havia sido pensada a partir da francesa L’Esprit Nouveau) sem, contudo, deixar de buscar uma identidade própria, nacional ou brasileira.

Muitas das contradições que surgiram e ainda surgiam nas discussões internas ou nas apresentações públicas do grupo modernista apresentaram-se ali novamente, mas talvez, pela primeira vez, não como matéria a servir apenas ao corolário de críticas e posições contrárias ao modernismo em suas diversas frentes (essa resistência era considerada como parte do jogo), e sim como partes de uma discussão dinâmica que visava a construção de uma inteligibilidade alcançável. Desse modo, abdicava-se intencionalmente ao aspecto disruptivo do novo em prol da atualidade, ou seja, de se entender o presente à luz do que estava sendo pensado no presente. Não era imperativo ao modernismo a destruição do passado, a condenação radical do classicismo e outras declarações que apenas confundem o público iniciado.

O discurso do grupo modernista dentro da revista, porém, continuava assertivo, amparado por uma composição tipográfica ousada, com referências do futurismo e do dadaísmo. A sua não linearidade era proposital, evitando a convencional relação de causa e efeito e da entrega facilitada do sentido ao leitor. Isso pois a revista tinha dois propósitos simultâneos, que se alternavam constantemente: ela devia ser lida e devia ser vista, com durações distintas que correspondiam às especificidades literárias e gráfico-plásticas.

Para ter a totalidade do sentido de ambas, com a leitura e a observação de seus desenhos, das composições ou caprichos tipográficos, que imitavam efeitos onomatopaicos e outros, o leitor deveria se tornar mais do que meramente um leitor: ele era, ao mesmo tempo, um espectador. Algo do sentido do movimento que fora obtido, bem ou mal, com os festivais da Semana, pretendia ser projetado novamente na revista, mas dessa vez sem as intervenções insultuosas, sem “os erros proclamados em voz alta”. Em vista de seu caráter cosmopolita ou da intenção francamente antiprovinciana, a revista publicaria textos também de poetas e intelectuais estrangeiros.

Carta Coletiva para Mário de Andrade, 1923

Paris, 13 Sept. 1923.

Meu caro Mário, escrevemos do quarto de Brecheret, depois de um jantar com o Cendrars, onde nos divertimos a grande. Anita chegou ontem, mas ainda não a vi. O Di vai bem e trabalhando: continuará esta carta coletiva. Recebi hoje um cartão de Yvan Goll onde ele me fala de 'une admirable épître de Mario de Andrade'. Ele está agora na montanha, mas voltará brevemente. É uma alegria para mim, saber que consegui estabelecer mais uma pauta literária entre o grupo e Paris interessante. Passo a palavra ao Di. Abraços!

'O Cendrars tem uma cabeça de boxeur, uma cabeça assim: (caricatura) [...] Anita chegou de 1a. classe e eu ficaria feliz se ela voltasse de 3a. Vou para Rússia em breve, ver o Lenine e morrer de frio LAVS DEO'. Amigo Mario um formidável abraço de saudade.

Carta de Mário de Andrade para Anita Malfatti - 2 jun. 1924, 1924

2 de junho.

Minha querida Anita.

Recebi tua carta ontem e já mando resposta, esta aqui, cheia, cheinha de abraços e mais abraços de saudade. Creio que nem poderei fechá-la! Como tua carta me fez bem. Tu, sempre peralta, sempre infantil, tens mais do que ninguém o dom de me alegrar. De repente fiquei alegre, comecei a achar que a vida não é tão ruinzinha assim. Que tinha acontecido? Recebera a tua carta, que li duas vezes.

Como me fez bem! Caçoas de mim, malvada! Não faz mal! Sinto que a tua caçoada é amiga, até me dá prazer. Então eu mandei o Brecheret visitar o Brankousi [sic] e me assustei com o teu classicismo? Estás muito enganada, minha querida! Eu poderia assustar-me só se não tivesse confiança no talento de vocês dois e isso é impossível. Acho que a obra de Brankousi é daquelas sobre as quais a gente deve refletir, embora não a imite. Traz sempre proveito e nos impregna daquela serena força que o grande escultor põe nas suas linhas tão simples. Quanto ao teu classicismo tenho plena confiança nele. Tu mesmo na tua carta confessas a tua admiração não diminuída por Matisse. E outra por Picasso. Mistura bem isso que o coktail [sic] sai delicioso. E por que te esqueces de Derain? Gostava de saber a tua opinião sobre ele. Sei que és sincera. Dize-me pois a tua opinião, mesmo que divirja da minha. Isso não tem a mínima importância. Gosto dele. Poderás não gostar. Isso não diminuirá em nada minha confiança em ti.[...]

Brancusi-Brecheret-Anita-Tarsila

Brancusi, Brecheret, Anita e Tarsila

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Alguns dos cadernos de desenhos de Anita dessa época revelam a proximidade entre ela e Brecheret, que inclusive deixou alguns croquis em algumas de suas páginas. Aliás, esses cadernos nos permitem formular uma triangulação curiosa: Brancusi, Brecheret e Anita.

Há ali inclusive desenhos de Anita que antecipam a solução plástico-formal da figura do futuro Abaporu de Tarsila do Amaral, artista que igualmente se encantou pela obra de Brancusi. A solução era bem simples: se Cézanne partiu dos volumes primários, cilindro, esfera e cubo, para reinterpretar a natureza, Brancusi elaborava as suas figuras a partir de estruturas ovais, assimiladas e repetidas por Brecheret, e a partir deste, também por Anita.

Uma obra como As lavadeiras, um desenho e aquarela sobre papel, demonstra claramente a aplicação desse princípio, por assim dizer, brancusiano. Numa carta enviada a Anita, datada de 2 de junho de 1924, Mário, que ganhou de presente este desenho, menciona a possível influência do escultor sobre os brasileiros.

Carta de Mário de Andrade para Tarsila do Amaral

Querida amiga.

Se é verdade que os gregos e os romanos tratavam seus deuses com familiaridade amiga, creio que foi o cristianismo que trouxe para os homens ocidentais o temor pelas entidades divinas. Aproximo-te temeroso de ti. Creio que é uma deusa: NÊMESIS, senhora do equilíbrio e da medida dos excessos. Quando um homem da Terra era demasiado feliz, via crescerem-lhe terras e riquezas, e tinha em torno de si braços, lábios de amor, coroas de glória e alegrias somente, Nêmesis aparecia. Vinha lenta, com seu passo lento, sem rumor. Mas ao homem da Terra fugiam-lhe as riquezas, alegrias. Perdia amor, glória e riso.

És Nêmesis, sem dúvida, eu era são. Alegre, confiante, corajoso. Mas Nêmesis aproximou-se de mim, com seu passo lento, muito lento. Depois partiu. Doenças. Cansaços. Desconsolos. Ainda todo o final de dezembro estive de cama. Venho agora da fazenda onde repousei 10 dias.

Mas será mesmo Nêmesis? Que és deusa, tenho certeza disso: pelo teu porte, pela tua inteligência, pela tua beleza. Mas a deusa que reprime o excesso dos prazeres? Não creio. Tua recordação só me inunda de alegria e suavidade. És antes um consolo que um pesar. A verdadeira, a eterna Nêmesis, são as horas implacáveis que passam dia e noite, dia e noite, sol e escuridão. Estou nos meses da escuridão. Foi a fraqueza que me fez pensar que eras tu Nêmesis. Perdão, estou a teus pés, de joelhos. Mais uma vez: perdão!

Espero tua carta longa, contando coisas breves de Paris. Já estou as imaginar a lindeza do meu Picasso. Obrigado. Dize-me alguma coisa da Arte. Já estás trabalhando? Pintas muito? Recebeste KLAXON n. 7?

Mário de Andrade.

Dançarina (Victor Brecheret), 1925

Victor Brecheret

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A escultura em bronze, coberto de pátina escura, feita por Victor Brecheret em 1925 tem 32 centímetros de altura por 5 centímetros de profundidade e 15 de largura.

Na peça, uma mulher se apoia em um só pé em uma postura de dança. De uma pequena base quadrada a dançarina avança para esquerda em um amplo passo que ainda não se desenvolveu completamente, enquanto os braços envolvem seu corpo.

As formas da dançarina são ovais e longilíneas, buscando uma harmonia dos membros em relação ao corpo, ainda que em posições anatomicamente impossíveis. O delicado pé esquerdo está apoiado na base quadrada, que dá sustentação à escultura.

Sua perna esquerda se estende diagonalmente para esquerda e a perna direita está erguida e flexionada, prestes a completar o passo. Há uma leve torção do quadril que acompanha o movimento da perna direita.

A dançarina tem corpo esguio e está nua. O abdome é comprido e a cabeça, de perfil e sem nenhuma expressão no rosto, volta-se para a esquerda, com os cabelos curtos.

O braço esquerdo, arqueado, passa sobre a cabeça, e toca com a palma da mão o ombro direito. O braço direito abraça os pequenos seios da dançarina e a ponta dos dedos toca a axila esquerda. Esse jogo dos braços dá a eles a impressão de um movimento circular.

Auto-Retrato (Tarsila do Amaral), 1922

Tarsila do Amaral

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O Autorretrato de Tarsila do Amaral é de 1922, desenhado com giz pastel sobre papel, com 39 centímetros de altura por 29 centímetros de largura.

Nessa obra, Tarsila se retrata a partir do colo, com grande destaque para o seu rosto. . Ela está levemente de perfil com o rosto virado para a direita. Os cabelos ondulados e curtos. Na altura das orelhas, na lateral direita da cabeça, há uma rosa vermelha presa nos cabelos. . Ela tem a pele bege clara, quase branca em alguns pontos. Tarsila usa uma roupa em tom azul-claro, com um decote que deixa o colo à mostra.

Na pintura há uma predominância do azul, que é mais claro ao fundo e que incide sobre os cabelos e sobre as grossas sobrancelhas da artista. Ela tem os olhos castanhos amendoados, o nariz arrebitado e os lábios vermelhos e grossos.

Também pode se perceber certa transparência nas cores da obra, como no leve vermelho dos lábios e no azul dos cabelos que quase parece se fundir com o fundo também azul.

A jovem Tarsila tem as pupilas castanhas levemente voltadas para a esquerda. A feição é séria e o ar resoluto.

No canto inferior direito da tela está a assinatura da artista e uma data: 09 de outubro de 1922.

Carta de Manuel Bandeira para Mário de Andrade - 23 nov. 1923, 1923

Rio de Janeiro, 23 de novembro [de 1923].

Mário. Recebi carta e Losango cáqui.

Losango cáqui é um título lindo. Adoro essa palavra losango. Mas não é Losango cáqui. Losango é figura de duas dimensões apenas. O teu livro é, em verdade, um romboedro cáqui, corpo prismático onde o branco sujo cotidiano sofreu a difração que faz o arco, sempre surpreendente, da velha. A Velha, com V grande, quer dizer a Mamãe, ci-devant e ci-derrière Vida. És tu, e tudo o que vês da vida, através de um mês de exercícios militares.

Ah, Mário! Morei o verão passado 4 meses em frente de um quartel de batalhão de caçadores e ouvia os ‘Escola!’ ‘não presta!’ ‘Um, dois, um dois, um dois, um dois, prrá!’ Não escrevi nada, mas como encontrei tudo nos teus poemas! Defeito capital do teu livro: inexistência dos toques de clarim; ‘alvorada’ – ó virgindades angélicas! – ‘boia’, ‘recolher’ e, sobretudo, o ‘silêncio’ abrindo o coração em diástoles extáticas. É capaz de fazer esse poema para mim?

Salvo um ou outro detalhe, entendi integralmente e sem nenhum esforço tudo o que lá dizes. E como a época é de radiofonia, exprimiu o que senti dizendo-te que os nossos aparelhos estão hoje quase perfeitamente sintonizados: tenho o teu comprimento de onda... Não fui eu que mudei (estou meio mineralizado de tanto fosfato de cálcio que tenho tomado); e a prova é que relendo a Pauliceia desvairada torno a sentir os mesmos sobrossos: furta verde ou banana maçã com pedras. No Carnaval carioca e neste Losango, não. Estás de vez.

Quando devolver o caderno, assinalarei uma ou outra pequena coisa. Houve mudanças em poemas que já conhecia, algumas reputo infelizes. Para te dar uma ideia, por ex. ‘Vespa da revista Klaxon’. Tiveste a intenção de ser claro, de ajudar o leitor que não tivesse notícia da revista. Para fizeste mal. Os lados incompreendidos de um poema não lhe prejudicam a beleza, Deus e a Vida, obra dele, também são incompreensíveis. E para ti católico, o mistério da Trindade?

Dizes que aquilo são nótulas, sensações etc.? Homem inteligentíssimo, o teu subconsciente ri-se de ti, e com ele eu posso rir-me também. Sabe que a tua inteligência é fora do comum, mas não basta para encabrestar tão subservientemente aquela besta apocalíptica! Todavia entendo o que queres dizer no prefácio. E isso porque li o Carnaval. Este tem linhas mais monumentais. Acho também que será nos grandes poemas deste gênero que poderás dar toda a tua medida. O resto, ao lado, fica parecendo treino.

Creio que a poesia modernista é propícia aos grandes poemas. O classicismo e o romantismo foram. O parnasianismo não. Era pau. O simbolismo não. Era débil, monocórdio. Eu tinha ganas de fazer um Malazarte! Faze tu! Já disse ao Graça que nós brasileiros podemos criar um ciclo de Malazarte.

– Estou tão apressado! Vi na capa do último livro de Renato Almeida o anúncio da Escrava que não é Isaura. Sinal que está para breve.

Grande Abraço

Manuel

Idem, ibidem, pp. 106-7.

Fernand Léger

Léger tornaria-se cada vez mais importante para os brasileiros, particularmente para Tarsila do Amaral e até Mário chegou a fazer alguns desenhos nos quais ele tenta imitar o método construtivo do pintor francês.

De modo semelhante a Juan Gris, Léger se utilizava de elementos cubistas para a construção de uma plasticidade particular e pessoal em torno de objetos da vida quotidiana, com especial interesse pela “civilização urbana e industrial”. A ele interessava os homens de todas as profissões, “inventores de imagens poéticas de todo o dia”, que lhe forneciam os temas e as imagens a serem declaradas na pintura seguindo o mesmo desenho lógico que havia por detrás das máquinas, das estruturas mecanizadas e dos objetos que eram por elas produzidos.

Numa das edições de L’Esprit Nouveau, Léger propõe: “As máquinas são soluções a problemas dados, uma lição de método. [...] O elemento mecânico é um meio, não um fim. Eu o considero simplesmente matéria-prima plástica, como os elementos de uma paisagem ou de uma natureza-morta. Para mim, a figura humana, os corpos não têm mais importância do que os pregos ou as bicicletas".

Carta de Mário para Anita, 1924

São Paulo 3 de janeiro 1924.

Anita querida:

Recebi ontem um teu recado de boas festas. Tão pequenino! Tão lacônico! que impiedade essa dos amigos que viajam! veem tanto, contam tão pouco! Manda-me dizer como e quanto trabalhas. Que fazes, que fazes. QUE FAZES????????? Eu me sinto glorioso. Sei que trabalhas, pelo Oswaldo. Disse-me ele que fizeste já umas coisas muito boas. Que teu último trabalho já recorda o bom tempo do Homem amarelo, do Japonês... Bravíssimo! Lembras-te? Tu mesmo me confessaste que depois desse período nada fizeras que te satisfizesse totalmente...Foi uma das últimas frases tuas, quando conversamos pela última vez, na tua casa. Creio, que agora estarás de novo contente. Eu estou satisfeitíssimo.

Paulo Prado, vi ontem. Trouxe um Juan Gris maravilhoso. O Survage não me agradou. O do Oswaldo é muito melhor. Oswaldo trouxe também um Léger admirável. Melhor que o meu – embora o meu seja bom também. Quem me surpreendeu inteiramente foi Tarsila. Que progresso, para tão pouco tempo! Puxa! Estou entusiasmado. Ainda não vi os quadros dela, que estão presos na Alfândega. Mas vi estudos e magníficos desenhos. E penetrei-lhe sobretudo a inteligência. Aquela Tarsila curiosa de coisas novas, mas indecisa, incipiente que eu conhecera, desapareceu. Encontrei uma instrução desenvolvida, arregimentada e rica. Tu e ela são a esperança da pintura brasileira. Tu no teu expressionismo, ela no seu cubismo. E o Brecheret vencendo... Que prazer! Sinto-me aos pulos. [...].

A viagem modernista

A adesão dos artistas brasileiros lá fora ao purismo e outras vertentes das primeiras vanguardas, pacificadas na década de 1920, de Tarsila, por exemplo, ao cubismo de Gleizes ou de Lhote (Mário a aconselha a aproveitar dele o “equilíbrio”, a “construção” e a “sobriedade”) permitiu que ambos os grupos – de artistas aqui estacionados e daqueles nômades vivenciando o que estava acontecendo no exterior – focalizasse o Brasil da cultura popular como uma fonte possível de novas descobertas e de um primitivismo ainda não experimentado ou visto nem aqui e nem lá fora.

A caravana paulista de 1924, representada pelos modernistas (Godofredo da Silva Teles, Dona Olívia Guedes Penteado, Oswald de Andrade, Tarsila, Nonê e Mário de Andrade) e o poeta francês Blaise Cendrars excursionando pelo interior de Minas Gerais, bem como a proliferação das revistas modernistas (Estética, A Revista, Verde, Terra Roxa e Outras Terras e a Revista de Antropofagia) atestam esse interesse como uma estratégica de proposição para uma estética moderna brasileira unificada em torno de um ideário comum, vinculado às culturas tradicionais e regionais do próprio Brasil, e que, de fato, não fora apresentada na Semana de Arte Moderna.

Na ocasião de sua viagem, Cendrars, durante a sua passagem pelo Brasil, advertiu os colegas brasileiros: “Por quê apropriar-se de outras tradições uma vez que nós já possuíamos as nossas?” Tarsila diz numa carta enviada à família, em 1923, a propósito da tela A caipirinha, na qual relembra a sua infância: “As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando”.

Carta de Mário de Andrade para Anita Malfatti – 20 jan. 1926, 1926

São Paulo – 20-I-926.

Anita bem dentrinho da minha amizade. Pois escute, no dia 1 ou 2 deste ou 31 ou 30 do passado inda escrevi uma carta deste tamanho pra você. [...] Você já sabe que confiança eu tenho por você. Confiança na sua força de pintora e de artista que eu sempre apregoei com grande, você sabe bem disso. Porém, e é meu dever de amigo que não oculta nada pros que quero mesmo bem, eu tenho uma desconfiança enorme pelo seu temperamento de mulher. Nunca vi uma menina mais orgulhosa e mais não-me-toques que você, puxa! De tudo desconfia. Uma independência orgulhosa como de ninguém. A gente nem bem faz uma restrição pra você pronto, já fica toda zangadinha. A gente lembra tal orientação de pintura, tal pintor, pronto, você já imagina que a gente quer que você siga ele. Não aceitas conselhos, logo fica cheia de ciuminhos.

É mesmo! Você se lembra? Logo quando você chegou aí em Paris uma carta que eu mandei pra você em que en passant falava sobre Derain? Pois guardo para mostrar pra você a bruta descompostura que você me mandou, toda abespinhada porque eu queira que você seguisse Derain. Eu não queria nada disso, porém conhecendo o temperamento dramático intensíssimo da sua pintura lembrava entre os modernos de França, moderno sem exagero, aquele que me parecia havia de ser muito útil pra você estudar.

O seu temperamento é intrinsecamente expressionista. Você tem um extraordinário temperamento de afetiva, duma grandeza que eu admiro e respeito. [...] Eu tinha medo que o orgulho de você te prejudicasse e acho mesmo que você quando se meteu recebendo conselhos daquele pintor decorador religioso, como é o nome dele mesmo? não me lembro, acho que errou profundamente e parece que o tempo me deu razão. Porém não falei nada, creio mesmo que aplaudi quando você me mandou contar por que você estava enciumada comigo por causa de eu gostar da pintura de Tarsila. Gosto mesmo e depois você se acalmou porque naturalmente notou que eu gostar da pintura de Tarsila não significava não gostar mais da de você.

Anita do coração, você é uma mulherzinha que eu admiro, além do bem que quero pra você, e em quem tenho toda confiança. O saber que você está sendo apreciada e está progredindo me enche a alma de Sol. [...] Nós nos metemos numa empresa árdua e enorme, Anita, porém não é mais tempo pra abandoná-la. Temos de ir até o fim. Eu peço ajoelhado pra você um trabalho incessante, sem desfalecimento nenhum. Quando cansar se lembre de mim que estou esperando dia a dia pelo que você pode e deve dar em arte, se lembre de mim e recomece com novo ardor. Ninguém pode viver sozinho a não ser que seja um monstro de orgulho infecundo e vilíssimo. Se arrime em mim da mesma forma com que eu sigo meu caminho arrimado nos que eu amo que nem você, Manuel Bandeira e outros. [...].

Carta de Mário de Andrade para Tarsila do Amaral – 15 nov. 1923

[São Paulo], 15 de novembro de [1923] – Viva a República!

Tarsila, minha querida amiga:

(Agora a letra corrente da conversa:)

Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épates. E se fizeram futuristas! hi!hi!hi! Choro de inveja.

Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos descrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA-VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.

Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio. E como será lindo ver na moldura verde da mata, a figura linda, renascente de Tarsila Amaral. Chegarei silencioso, confiante e te beijarei as mãos divinas.

Um abraço muito amigo do Mário.

Pau Brasil, 1924

Oswald de Andrade

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A “matavirgem” de Mário de Andrade precedeu o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, que Oswald de Andrade lançou em 1924 no jornal O Correio da Manhã (um ano antes do livro Pau-Brasil). Oswald captou a essência da lição ensinada por Blaise Cendrars e já imaginada por Mário antes: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”.

Tal como Mário, Oswald então reclamaria por uma assimilação crítica da modernidade europeia e fundamentalmente por uma arte que respeitasse as feições do povo brasileiro, além da sua realidade histórica e local.

De certo modo, o manifesto e o livro Pau-Brasil reconciliaram o Oswald pós-futurista, do futurismo paulista, ao Oswald nacionalista dos idos de 1915. Tarsila era-lhe o par ideal com a sua nova pintura, refinada e primitiva a um só tempo, com uma fatura planar que fora apropriada das pinturas de máquinas e estruturas tubulares de Fernand Léger, misturada a uma preocupação paulatinamente voltada à percepção do sonho, da reminiscência imaginada e do primitivismo folclórico, como algo aproximado à obra de outro artista francês, o douanier Rousseau.

Manuel Bandeira, carta para Mário, 1925

Manuel Bandeira

[...] Oswald mandou-me o Pau-Brasil. Que capa f. da p.! Aquilo sim, é arte brasileira ‘saída dos discursos da câmara, dos comentários dos jornais etc.’ O que está dentro é bom Oswald, empregando a técnica de Kodak de Cendrars.

Pena aquela prosa prefacial – cafeísta e importante. Deixemos de parolagem. Nós não inventamos nada. Isso de falar de Europa decadente e esgotada é pretensão muito besta. O livro tem coisas deliciosas, do realista Oswald, observador irônico. É o que eu chamo o melhor Oswald. Ele sente e critica deliciosamente o Brasil, mas no fundo é pouco Brasil. Pau-Brasil é tradução de Bois du Brésil. Acho você mais Ibirapitanga.

O n. 3 da Estética tem produzido indignação! Sobretudo ‘Pensão familiar’ e os poemas do Guilherme. Prudentinho tem fé que a vendagem seja grande pelo sucesso de escândalo. Tanto que me passou um telegrama afobado: ‘MANDE MAIS MIJO DE GATO!’

13 de setembro de 1925, in:

Marcos Antônio de Moraes, Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, Edusp, são Paulo, 2001, pp. 152-3

Esboço Para Negra (Tarsila do Amaral), 1923

Tarsila do Amaral

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Obra de Tarsila do Amaral de 1923, feita em lápis e aquarela sobre papel, tendo 23 centímetros de altura por 18 centímetros de largura.

No esboço há poucas cores, estando presente algumas manchas marrons de diferentes tonalidades feitas com aquarela. A figura central é uma mulher careca, com a cabeça pequena em relação ao corpo e com feições grandes em relação ao rosto. Ela está nua, sentada com as pernas cruzadas e tem um dos braços sobre as pernas.

Os olhos são oblíquos e estreitos, como se estivessem meio fechados. As sobrancelhas são finas e bastante arqueadas, o nariz é largo e chato e sua boca é grande, com lábios muito grossos, que chegam a escapar de uma das extremidades do rosto, que é a única parte colorida do corpo com uma tonalidade marrom clara.

O corpo da mulher é largo, os braços e pernas grossos e quase sem detalhes além do contorno. O braço direito está apoiado sobre as pernas cruzadas e sobre ele está um de seus grandes seios, que pende com o mamilo voltado para baixo. Detrás da mulher desponta uma longa folha de forma arredondada, também sem nenhuma cor.

Este trabalho foi um estudo realizado por Tarsila do Amaral para a realização da obra “A Negra” lançada no mesmo ano.

O Mamoeiro (Tarsila do Amaral), 1925

Tarsila do Amaral

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Obra de Tarsila do Amaral de 1925, pintada com tinta à óleo sobre tela de 65 centímetros de altura por 70 centímetros de largura.

Nesta pintura há quatro casinhas sobre os morros. As casinhas têm as paredes brancas, as janelas e portas azuis, e os telhados vermelhos. O cenário é um dia claro de céu azul.

Entre as casas há alguns mamoeiros estilizados, com frutos muito grandes, alguns quase do tamanho das casas.

Em primeiro plano está o pequeno e calmo rio, de águas azuis claras. De dentro dele saem algumas folhas verde-escuras. A ponte, ou passarela, que passa sobre o rio, é feita de pedras cinza. As casas estão sobre montes marrons e alguns deles são verdes. Entre as casas estão os mamoeiros, um poste de madeira e um varal com roupas coloridas penduradas. Na porta de uma das casas está uma mulher e entre os morros, outra mulher caminha de mãos dadas com duas crianças. Esses detalhes da obra representam cenas que mostram a vida simples, o dia a dia das pessoas: roupas no varal, vizinhas que se visitam, a mãe com filhos.

Todos os elementos presentes na pintura possuem formas arredondadas e volume com luz e sombra próprios.

O Mamoeiro se caracteriza pelas cores fortes, temas tropicais e a presença de personagens tipicamente brasileiros.

Objetos de viagem de Mário de Andrade

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A seguir descreveremos sete objetos de viagem coletados por Mário de Andrade em suas viagens ao Amazonas.

Oxê de Xangô do século XIX feito em madeira, com 57 centímetros de altura por 30 de largura e 23 de profundidade. A escultura em madeira escura mostra uma figura humana, com a cabeça grande em relação ao corpo. Ela está com os braços esticados ao longo do corpo e tem uma expressão serena. Em seu rosto há grafismos em padrões horizontais e verticais. Sobre sua cabeça está um chapéu em forma de machado, onde é possível ver o desenho de um rosto.

Exu Sete Caminhos, sem data identificada. A obra é feita em ferro, sem nenhuma pintura e tem 42 centímetros de altura por 35 de largura e 18 de profundidade. Nela está uma figura humana em pé segurando uma lança. Além da ponta principal da lança, tem outras seis pontas que se abrem simetricamente, três para esquerda e três para direita.

A Cabeça masculina é da década de 1930 e feita em madeira policromada. Ela tem 18 centímetros de altura por 9 de largura e 10 de profundidade. É marrom clara, com os cabelos curtos e pretos e as sobrancelhas também pretas. A testa é protuberante, o nariz fino e agudo na ponta. Os olhos grandes, com as pálpebras grossas e a pupila preta. A boca tem lábios finos e compridos e o queixo arredondado se projeta levemente para frente.

A Coifa Carajá é da década de 1920, feita de penas e fibras. Ela tem 31 centímetros de altura por 25 de largura e 25 de profundidade. Trata-se de um arranjo esférico, feito com penas vermelhas, amarelas e azuis. As penas amarelas são mais curtas e envolvem a parte mais circular da peça. Na parte superior despontam penas longas e vermelhas cercadas por penas azuis mais curtas.

Colar de costelas de cobra, sem data identificada. Feito de ossos e fibras. Ele tem 4 centímetros de altura por 82 de largura e meio centímetro de profundidade. É apresentado disposto de forma circular. O cordão é marrom e as dezenas de ossos que o compõe são levemente curvos e todos do mesmo tamanho.

Bastão antropomorfo, sem data identificada, feito de madeira policromada, ele tem 49 centímetros de altura por 12 de largura e 10 de profundidade. O bastão é quase como um curto cetro, com uma cabeça na extremidade superior. A cabeça é redonda, têm os cabelos pretos, os olhos finos e esticados, o nariz chato e a boca grande e larga com os dentes à mostra. No pescoço um colar bem grosso com padrões triangulares.

Máscara, de couro de animal feita entre os anos de 1928 e 1929. Ela tem 32 centímetros de altura por 27 de largura e 2 de profundidade. A máscara ainda tem os pelos escuros e compridos do animal a que pertencia. O formato é semelhante à cabeça de um cachorro com as orelhas compridas. Há duas perfurações para os olhos, uma para o nariz e outra mais comprida para a boca.

Oxê de Xangô + Exu de 7 Caminhos + Cabeça Masculina + Coifa Carajá + Colar de Costelas + Bastão + Máscara

Mário de Andrade e Macunaíma

A primeira versão manuscrita de Macunaíma foi feita em poucos dias, durante as férias passadas na chácara do primo Pio Lourenço Correa, em Araraquara, em finais de 1926 e início de 1927.

Mário escreveu-a em sete cadernos, depois condensados em dois, e desse material fez uma versão datilografada que também sofreria várias correções e acréscimos na primeira prova impressa, frutos de debates principalmente com Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade.

O processo de composição de Mário era extenuante, envolvendo muitos ires e vires, anotações, fichamentos, rascunhos. Não era algo que se dava facilmente, e os próprios depoimentos do autor, além da enorme documentação de seus arquivos depositada no Instituto de Estudos Brasileiros o demonstram.

Macunaíma é uma palavra coletada no livro Vom Roraïma zum Orinoco (1917), de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que teve inúmeras anotações de Mário sobre as suas margens, como também serviu para os primeiros esboços, pequenas folhas avulsas, às vezes pedacinhos quaisquer, para registrar as primeiras ideias. É possível perceber, folheando esse material de notas de expressões e recolha de elementos diversos, a exasperação do escritor como se estivesse encontrado um grande tesouro no meio da selva e o quisesse colher com as próprias mãos, sem nada deixar para trás.

Antropofagia, 1928

Segundo Raul Bopp, a Antropofagia teria surgido em 1928 numa reunião em um restaurante especializado em rãs, em São Paulo. O grupo de convivas, capitaneado por Oswald e Tarsila, estava a conversar animadamente quando veio à mesa o prato de especialidade da casa: ‘quando, entre aplausos, chegou o prato com a iguaria, Oswald levantou-se, começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta porcentagem de burla, a doutrina da evolução das espécies.

Citou autores imaginários, os ovistas holandeses, a teoria dos homúnculos, para provar que a linha da evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropoide, passava pela rã – essa mesma rã que estamos saboreando entre goles de um Chabli gelado’. Tarsila interveio dizendo: ‘Com esse argumento, chega-se teoricamente à conclusão de que estamos sendo agora uns... quase-antropófagos’. Pouco tempo depois Oswald resolveu redigir um manifesto, algo que pudesse retomar os propósitos apenas enunciados na Semana de Arte Moderna e que, ao mesmo tempo, desse combate ao nacionalismo ufanista julgado por ele, jacobino, pacificador, do Verdeamarelo e da Anta, coordenados por Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo.

Surgidos um pouco antes, em 1927, esses movimentos tocados pelos antigos parceiros modernistas agora o criticavam como alguém demasiado preso ainda às correntes estéticas europeias. Segundo Raul Bopp, que participou da redação do Manifesto antropófago, o que os interessava era redescobrir o Brasil a partir de uma nova perspectiva. Nesse sentido diz: “Debaixo de um Brasil de fisionomia externa, havia um outro Brasil de enlaces profundos, ainda incógnito, por descobrir. O movimento, portanto, seria de descida às fontes genuínas, ainda puras, para captar os germens de renovação; retomar esse Brasil, subjacente, de alma embrionária, carregado de assombro e procurar alcançar uma síntese cultural própria, com maior densidade de consciência nacional."

Mário de Andrade, artigo na Revista da Antropofagia, 1929

Mário de Andrade

Antropofagia?

Mário de Andrade.

Ando lidando bastante com feitiçaria aqui no Nordeste e acho que esta comunicação que segue pode interessar aos cultores da antropofagia... filosófica paulista. Se trata do Mestre (Santo) Antonio Tirano.

Eis a cena que se passou entre mim e os dois feiticeiros meus informantes, gente sarada dos catimbós de Natal. Eu escrevia na pauta as rezas que os dois juntos me cantavam e tomava em seguida as informações sobre o Mestre a que a reza pertencia. Os dois catimbozeiros já estavam com a língua solta, sem cerimônia, depois de várias horas de conversa e almoço bom no meio. Eu escrevia.

– ...porque Turuatá é também Mestre caboclo (indígena) frexador malevo. Bem para cegar os outros... Gosta de trabalhá cum cobra. Fura o oio da cobra na intenção da pessoa a quem qué cegá e cega. Chega a cumê pedaço de cobra, cru, mais cauim (por aqui, nos catimbós, qualquer álcool forte).

– Eu já sigurei uma jararaca pr’ele cegá!

– ...foi discipo do grande malfeitô Antonio Tirano (eu escrevendo) que para a gente tê trabalho dele tinha-se que dá pr’ele um filho, uma...uma pessoa da família assim...

Parou.

– Mas como é?... Tinha-se que matar essa pessoa é?

Os dois estavam desapontadíssimos, rindo amarelo.

– Não sabemos não sinhô...

– esse nem tem linha (reza cantada)... Não se invoca não...

Voltei a escrever pra evitar aos dois a sensação de examinados.

– É lógico que vocês não invocam ele, sei bem. Mas podem me contar. Minhas notas são pra estudo, que o Mestre seja bom ou ruim não tem importância não. Então ele obrigava o mestre a sacrificar alguém...

– É... exigia sempre sangue humano...

– Sinão não trabalhava, heim! Que safado!

– Prifiria sangue de criança... mas não se invoca mais!

– Mas às vezes aparece, não?

– Às veiz...

– E quando aparece faz estrepolia?

Nova e sempre muita hesitação. Respondeu com má vontade:

– Faiz, sim sinhô...

– Pede sangue?

– Pede, sim sinhô...

– Pede pra beber?...

Arrancou:

Eu não sei, não sinhô!

Esse a gente não invoca não!

Eu escrevendo textualmente como está. O outro, mais palavroso, mais esperto, que cursara até o terceiro ano do Ateneu, de Natal, se calara. Parei de escrever, insisti, perguntei. Não foi possível tirar mais nenhuma informação útil ao meu amigo Oswald de Andrade. O outro mais humilde e mais feiticeiro também, se fechara em copas meio desconfiado. Voltei a escrever. Esse, o mais humilde, acrescentou reflexivo: É uma biografia desgraçada... (Natal – janeiro de 1929).

Mário de Andrade, “Antropofagia?”, in Revista de Antropofagia, n. 10, fevereiro de 1929, p. 5

Carta de Mário de Andrade para Tarsila do Amaral – 4 jul. 1929, 1929

Mário de Andrade

São Paulo, 4 de julho de 1929.

Tarsila

espero que esta carta seja lida confidencialmente apenas por você e Oswaldo pois que só a você é dirigida. Acabo de receber por Anita o convite que você me faz e que, feito com o desprendimento e o coração tão maravilhoso de você, inda mais me entristece. mas eu não o posso aceitar. Por isso mesmo que a elevação de amizade sempre existida entre você, Oswaldo, Dulce e eu foi das mais nobres e tenho a certeza que das mais limpas, tudo ficou embaçado pra nunca mais.

É coisa que não se endireita, desgraçadamente pra mim. Mas devo confessar a você que sob o ponto-de-vista de amizade, único que me pode interessar como indivíduo, nada, absolutamente nada se acabou em mim. Se deu apenas uma como transposição de planos, e aqueles que faziam parte da minha objetividade cotidiana, continuaram amigos nessa espécie de ambiente de anjo em que o espírito da gente descansa mais, povoado de retratos bons. E então eu, que não fui feito pra esquecer, não será possível jamais que eu me esqueça nem de ninguém nem de nada. Nenhum sentimento desagradável permanece em mim e se acaso alguém confiar a você alguma queixa ou acusação feita por mim contra quem quer que seja de sua família, eu garanto que mente.

Pedi aos meus companheiros de vida e até a amigos que nem Couto de Barros, que não me falassem em certos assuntos. Apenas, Tarsila: esses assuntos existem. E como os podemos esquecer, vocês e eu, que todos conservamos nosso passado comum? E quanto a mim, Tarsila, esses assuntos, criados por quem quer que seja (essas pessoas não me interessam), como será possível imaginar que não me tenham ferido crudelissimamente? Asseguro a vocês – tenho todo o meu passado como prova e vocês me conhecem espero que bem – que as acusações, insultos, caçoadas, feitos a mim não podem me interessar. Já os sofri todos mais vezes e sempre passando bem. E nem uma existência como a que eu levo pode se libertar deles.

Desque resolvi publicar Pauliceia, de que um só poema exposto provocara o maior enxurro de estupidez e presumidos insultos de que se enaltece a história literária brasileira, desde então me revesti dessa contemplatividade cínica que nos permite, sem inquietar a sinceridade com que caminhamos pra realização de nós mesmos, passarmos incólumes no meio de certos heróis.

Não me atingem e, de resto, não os leio. Mas não posso ignorar que tudo foi feito na assistência dum amigo meu. Isso é que me quebra cruelmente, Tarsila, e apesar de meu orgulho enorme, não tenho força no momento que me evite de confessar que ando arrasado de experiência. Eu sei que fomos todos vítimas dum ventarrão que passou. Passou. Porém a árvore caiu no chão e no lugar de uma árvore grande, outra árvore tamanha não nasce mais. É impossível. Eu peço a vocês licença pra cumprimentá-los quando nos encontrarmos.

Assim com desta carta e do que a motiva ninguém saberá por mim, tenho certeza que corações nobres como os de vocês hão de sentir esse pudor de não dar azo a que os outros façam de nós e dum passado tão lindo nosso, o assunto deles. Peço mais que me recomende respeitosamente aos de sua família e enumero uma carícia toda especial a Dulce que no meu mundo faz parte do Sol. E paro porque afinal tudo isso é muito triste e pouco digno dos seus olhos e coração que só podem merecer felicidade.

Respeitosamente

Mário de Andrade.

Goeldi e Cobra Norato

Goeldi foi convidado a ilustrar uma segunda edição especial do livro Cobra Norato, de Raul Bopp, em 1937. Edição luxuosa, com tiragem de apenas 150 exemplares numerados.

As gravuras feitas pelo artista são um magnífico exemplo de como Goeldi encontra e resolve a cor dentro da estrutura sintética conseguida em suas imagens gráficas. Faz-nos pensar também como a lenda amazônica da Cobra Grande, tema do livro de Bopp, forneceu de certo modo a Goeldi a oportunidade para reconciliar a sua sensibilidade e ironia, moldada em áreas e modos europeus, aos propósitos das buscas antropofágicas pelo Brasil profundo, incógnito – ou, nessa altura do tempo, aos seus resquícios pelos menos –, assim como às memórias da sua própria infância vivida na floresta (ele havia ido com um ano de idade para a região, em Belém do Pará, acompanhando o pai, o naturalista e zoólogo suíço-alemão Emílio Augusto Goeldi).

Goeldi afirmou-se a partir de então como um artista que seguiria um caminho pessoal, e embora não possamos relacioná-lo ao diretamente ao surrealismo, embora haja analogias com este movimento. Nas décadas de 1940 e 1950, o artista passou a iterar nos temas que o tornariam mais conhecido do público de hoje: cenas dos arrabaldes do Rio de Janeiro com suas ruas frequentemente desertas, varridas pelo vento ou habitadas por personagens marginais como vagabundos, mendigos e urubus.

O fim da Antropofagia

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A antropofagia não sobreviveu como movimento ao início da década de 1930. E de maio de 1928 até agosto de 1929, a Revista de Antropofagia, em suas duas dentições, embora tenha sido a plataforma para o anúncio da arte antropofágica como a vanguarda dos brasileiros que estão comendo a arte deplorável do passado, apresentando ao mundo algo novo e inaudito, na prática reuniu quase sempre o mesmo grupo de defensores mais radicais de suas propostas, reiterando as mesmas coisas, mas sem a potência e a virulência inicial, enquanto linguagem ou mesmo enquanto elocução típica a manifestos modernos.

Além disso, a Revista tornou-se hostil aos autores que, embora adeptos do modernismo, possuíam ou possuíram outras orientações poéticas ou estéticas, ou que simplesmente não queriam o rótulo de antropófagos. Mário de Andrade foi um deles. As chacotas, insultos e ironias de mau gosto vão se acumulando umas após outra edição dos números da Revista contra o autor de Pauliceia, um pouco gratuitamente, um pouco por preconceito de gênero (algo difícil de ser discutido à época), e muito principalmente pela insistência consciente de Mário em se manter a uma distância cordial do grupo.

O Surrealismo

O surrealismo de André Breton, cujo manifesto é de 1924, havia fornecido as premissas básicas de operação quanto à composição heteróclita na literatura, mas também nas artes visuais. Desde 1925, um jogo feito por alguns poetas dadaístas chamado de cadavre exquis (cadáver delicioso) que consistia em cada jogador escrever aleatoriamente num pedaço de papel escondido da vista dos demais uma palavra ou verbo e depois juntar o resultado numa frase desconexa, sem significado algum, mas estranho e às vezes belo quanto ao significante.

Breton, por sua vez, teve como uma de suas principais referências a obra de Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), nascido em Montevidéu – autor dos Cantos de Maldoror (1869), assinado com o pseudônimo de Conde de Lautréamont –, morto prematuramente aos 24 anos. A obra é toda ela permeada de violências e obscenidades, além de grosserias gramaticais e trechos explicitamente plagiados de outros livros da história da literatura.

Breton, reclamando-o como um precursor absoluto do surrealismo viu-o como a “revelação total que parece exceder as possibilidades humanas” e muitos pintores associados ao movimento fizeram de sua definição nonsense de pintura quase um dogma: “Pintura é o encontro fortuito de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre uma mesa de operação”

Ismael Néry

Ismael Nery (1900-1934) também teve uma relação especial com o surrealismo francês, principalmente a partir de sua segunda viagem à França, em 1927 (o pintor estudou na Academia Julian no início dos anos 1920) durante a qual conheceu Breton, Marc Chagall e Marcel Noll, entre outros.

A partir dessa data, Ismael Nery desenvolveu uma pintura refinada, filtrando elementos cubistas, como, por exemplo, na decomposição das figuras de frente e de perfil, depois justapostas na mesma cena, além do intercâmbio e rebatimento das partes internas e das externas das coisas representadas.

Nery teve também papel de pensador e doutrinador de poetas e artistas mais jovens que se interessaram pela sua versão neotomista do catolicismo, denominada por ele “essencialismo”. Ele afastava-se assim da antropofagia, preferindo manter distância da temática indígena e dos elementos em geral explorados por aquele movimento. Não há em sua obra interesse algum pela expressão de um nacionalismo; pelo contrário, Nery visava a uma universalidade alcançável por meio da transcendência e da experiência da conversão mística, o que o aproximou, de certo modo, aos rituais que os antropófagos apenas consideraram estruturalmente.

Composição com estátua e monstro (Cícero Dias), 1928

Cícero Dias

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Esta obra de Cícero Dias é de 1928 e foi desenhada com lápis e pintada com guache sobre papel, tendo 55 centímetros de altura por 38 centímetros de largura.

Na obra há uma estátua em uma viela, cercada por casas. Há elementos que chamam atenção na obra, como, por exemplo, a composição das casas, dispostas desordenadamente. Os muros que ladeiam a pequena viela, onde está a estátua, são compostos em zigue-zague. As paredes das casas não são verticalmente retas, elas se inclinam para um lado e para o outro, dando à imagem um aspecto fantástico e onírico.

A estátua, que ocupa o centro da obra, está em pé e nua e apresenta uma tonalidade acinzentada. Aparentemente, não tem braços.

As casas em torno da estátua têm paredes cinzas amarronzadas e parecem formar uma viela sem saída. No quintal da casa do lado direito há um arbusto verde de onde desponta um galho comprido com folhas também verdes. À esquerda há duas casas com telhados vermelhos e sobre um deles há um pequeno cachorro preto. Ao fundo, atrás de três residências, há uma figura humana gigantesca, vista apenas do nariz para cima. Seu corpo é todo laranja e seu braço esquerdo se ergue arqueado, como que prestes a cair sobre as casas à frente e destruí-las. Os olhos desta monstruosa personagem são completamente brancos.

Cicero Dias

Outro artista importante que flertou com o surrealismo, aproximando-se, sobretudo, da pintura de Marc Chagall (1887-1985), foi Cícero Dias (1907-2003).

Ao longo de sua vida, Dias pintou cenas oníricas misturadas a reminiscências de sua infância passada em um engenho de Recife. Em 1931, Dias apresentaria um painel de quinze metros, Eu vi o Mundo... Ele começava no Recife, que levantou polêmica pelas cenas eróticas nele contidas.

Em 1933, o artista ilustrou a primeira edição do livro Casa Grande & Senzala, do sociólogo Gilberto Freire (1900-1987), escrito em Portugal – um importante passo em nossa história contra o determinismo climático e racial como teses a justificar o desenvolvimento da nação brasileira.

Estrela da Manhã, de Manuel Bandeira (Tomás Santa Rosa Jr), 1936

Tomás Santa Rosa Jr

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Estrela da Manhã, de Manuel Bandeira.

Obra de Tomás Santa Rosa Jr de 1936, pintada com nanquim e aquarela sobre papel, com 27 centímetros de altura por 27 centímetros de largura.

Esta obra faz referência ao livro e, mais especificamente, ao poema que dá título ao livro de Manuel Bandeira, chamado Estrela da Manhã. Na obra, onde predomina o azul, está a imagem de uma mulher nua, que paira sobre a cidade, com uma estrela sobre o sexo. Ela representa a estrela da manhã.

As primeiras estrofes do poema dão o tom presente na pintura:

Eu quero a estrela da manhã

Onde está a estrela da manhã?

Meus amigos meus inimigos

Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua

Desapareceu com quem

Procurem por toda parte

Na obra há um céu azul, mais escuro à esquerda que vai ficando mais claro à direita. Nele há algumas nuvens, representadas por formas ovais, e algumas poucas estrelas. A mulher nua, de corpo alvo, paira na parte mais clara do céu, no amanhecer. Ela está com a frente do corpo voltada para nós, os braços cruzados atrás da cabeça e os cabelos voam para esquerda. Ela tem contornos e formas delicadas.

Abaixo, mais ao fundo, a arredondada baía de águas azul-claras, que aparece cercada pelas ondulantes montanhas verdes. Na parte inferior, em primeiro plano, há um prédio bege de quatro andares, sobre ele quatro coqueiros e à sua frente três homens. Ao lado deles um arbusto com folhas compridas e pontudas.

Depois da figura da Estrela da Manhã o que mais se destaca na imagem são os homens. Eles estão em poses desesperadas com os braços erguidos em direção ao céu. As roupas dos homens são brancas, eles vestem sapatos pretos e apresentam alguns detalhes sugerindo que são marinheiros, como a gola da camisa de um e a boina de outro.

Dois deles, posicionados mais à esquerda, estão frente a frente com os braços erguidos. Seus pés não tocam o chão, como se estivessem saltando. O terceiro, mais à direita, salta e lança a cabeça para trás com uma expressão desesperada.

O poema de Bandeira termina com a seguinte estrofe:

Procurem por toda parte

Pura ou degredada até a última baixeza

Eu quero a estrela da manhã.

Jorge de Lima e a Pintura em Pânico

Jorge de Lima

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Em 1943, Jorge de Lima publicaria o livro Pintura em Pânico, com 41 fotomontagens, em edição numerada de 250 exemplares, com apresentação de Murilo Mendes, que escreveria então: “Há uma combinação do imprevisto com a lógica. E a fotografia tem ajudado o homem a alargar sua experiência da visão”.

Mário de Andrade, amigo do poeta-pintor, escreveria sobre esses mesmos trabalhos que “a fotomontagem parece brincadeira, a princípio. Consiste apenas na gente se munir de um bom número de revistas e livros com fotografias, recortar as figuras, e reorganizá-las numa composição nova, que a gente fotografa ou manda fotografar.

A princípio as criações nascem bisonhas, mecânicas e mal inventadas. Mas aos poucos o espírito começa a trabalhar com maior facilidade, a imaginação criadora apanha com rapidez, na coleção de fotografias recortadas, os documentos capazes de se coordenar num todo fantástico e sugestivo. [...] em vez de uma pura brincadeira de passatempo, estamos diante de uma verdadeira arte, de um meio novo de expressão!"

Mulher com cabeça de escafandro + Mulher com perfil de gorila, 1939

Jorge de Lima

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Mulher com cabeça de escafandro (O Julgamento do Tempo) e Mulher com perfil de gorila.

São duas fotocolagens em preto e branco feitas por Jorge de Lima em 1939. A primeira delas tem 15 centímetros de altura por 11 centímetros de largura. A outra tem 14 centímetros de altura por 11 de largura.

Na obra “Mulher com cabeça de escafandro'', há uma mulher sentada no que parece ser um divã, por sua pose reclinada para esquerda. Ela está elegantemente vestida. Usa um grosso colar de brilhantes no pescoço e um vestido longo, brilhante e decotado, que deixa os braços à mostra a partir da altura do antebraço. A mulher usa uma pulseira no braço esquerdo, que está flexionado. Sua mão toca o encosto lateral do assento, onde parece ter sido sobreposta a imagem de uma concha do mar aberta, com suas concavidades circulares.

Os cabelos da mulher são curtos e encaracolados. O rosto foi sobreposto pelo de outra mulher, mas mantendo a preocupação com a proporcionalidade. O rosto sobreposto tem a pele bem clara. As sobrancelhas são finas. Os olhos amendoados, com as pupilas claras e voltadas para frente, como se nos encarassem. Seu nariz é fino e comprido e a boca é pequena com os lábios grossos.

Ao lado direito há uma estátua que está sobre as pernas da mulher e vai até a altura de sua cabeça. É uma divindade hindu com seus 16 braços abertos, oito de cada lado. Ela está com os joelhos abertos e levemente flexionados, sobre sua cabeça há uma cabeça menor com um adorno cônico sobre ela.

Ao fundo há uma parede branca e uma janela com uma cortina transparente e esvoaçante.

A fotocolagem “Mulher com perfil de gorila” mostra uma mulher de perfil, voltada para esquerda, sentada em um banco. No lugar de sua cabeça foi colada a imagem de uma cabeça de gorila, que também está de perfil. Ela usa um longo casaco de pele que se estende até o chão, cobrindo o banco onde ela está sentada e do banco só é possível ver os pés. As pernas da mulher estão cruzadas e também estão cobertas por um longo vestido escuro, que chega até seus pés. A única parte visível de seu corpo é uma das mãos, que desponta do grosso casaco de pele com uma pulseira de pérolas no punho, tem as unhas compridas e pintadas e um cigarro entre os dedos, que segura de maneira elegante. A cabeça de gorila está com os dentes à mostra.

Urubus (Oswaldo Goeldi)

Oswaldo Goeldi

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Esta é uma obra de Oswaldo Goeldi e não há a data da sua realização. Ela foi realizada na técnica de xilogravura sobre papel e tem 15 centímetros de altura por 16 centímetros de largura.

A xilogravura é uma técnica de impressão que consiste numa gravura em que se utiliza uma madeira como matriz. Na obra de Goeldi o resultado é um fundo preto no qual a imagem se destaca pelos traços brancos, isso se dá porque o artista entalha o desenho na madeira, a coloca em contato com a tinta preta e as partes entalhadas não entram em contato com a tinta. Na hora de gravar, quando a madeira toca o papel, ela imprime em preto tudo que não foi entalhado, como uma imagem em negativo.

Nesta obra, na parte inferior, em primeiro plano, há quatro urubus pousados no chão. Mais ao fundo, no meio da obra, estão mais sete urubus ciscando e um oitavo se aproxima voando, prestes a pousar junto com os demais.

Em último plano, na parte superior, identificamos sua ambientação. À esquerda, algumas casas e postes de luz. Mais ao centro, o enorme casco de um barco e sobre ele, um mastro em forma de cruz. E à direita está uma amurada, em que há um enorme cano em sua parte inferior, de onde sai um fino curso de esgoto.

Estes elementos, ao fundo da imagem, mostram que as aves estão em uma região portuária. As diferentes poses dos urubus indicam uma intensa atividade das aves carniceiras. Não está identificado o que alguns dos urubus bicam no chão.

Retirantes (Cândido Portinari), 1936

Cândido Portinari

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Obra de Cândido Portinari de 1936. Trata-se de uma pintura em óleo sobre tela de 73 centímetros de altura por 59 centímetros de largura.

Na pintura há três mulheres, dois bebês e uma menina, todos de pele parda. O grupo, representado em primeiro plano, ocupa quase toda a área da tela.

As mulheres e crianças repousam em uma região de solo arenoso, sem nenhuma árvore, sob o céu azul do entardecer ou da alvorada. Essa impressão se dá pelo azul claro do céu na linha do horizonte, que vai ficando mais escuro à medida que se afasta dela. No canto superior direito há cinco gaivotas brancas ao longe, alinhadas em diagonal.

À esquerda, um dos bebês está sentado no chão e uma das mulheres está sentada sobre algo que parece ser uma mala ou baú, com as mãos sobre as coxas. Ao lado dela, o outro bebê está de pé e olhando para trás, em direção à outra mulher que também está de pé, com uma das mãos sobre a cabeça. À direita, a terceira mulher está sentada de perfil sobre uma mala, com os antebraços apoiados no colo. Atrás dela está a menina, de pé, com as mãos apoiadas em seu ombro e direcionando o olhar ao canto esquerdo da tela.

As mulheres usam vestidos brancos bem simples, sem nenhum adorno ou detalhe. A menina também usa um vestido branco simples e uma fita vermelha com laço em volta da cabeça e os bebês estão nus.

À frente do grupo, sobre o chão, há um baú prateado com toques vermelhos, uma moringa de barro e algumas pedras pequenas espalhadas pelo chão.

Cândido Portinari

Por volta do final dos anos 1930, a pintura de Portinari havia assimilado as formas do classicismo de Picasso de 1920/21, de sua fase do retorno à ordem (que de resto foi também assimilado por Di Cavalcanti e outros no Brasil, e Rivera no México, entre outros) e a adaptado a uma temática regional, tratando as figuras da terra, os trabalhadores do campo, e principalmente os retirantes, os filhos da seca.

Segundo Mário, Portinari estava atento ao que acontecia em seu entorno, pois “se é certo que ele parte da natureza para encontrar a forma, não é menos certo que em cada forma achada ele encontra o Brasil”. A pintura de Portinari nessa época está claramente voltada à expressão de um ideal nacionalista que, muito embora expusesse as atrozes diferenças sociais e a exclusão das classes mais vulneráveis socialmente no interior da sociedade brasileira, também estereotipava o brasileiro comum, agigantado e moldado com as cores da terra, como a enaltecê-lo pela monumentalidade da figura, mas a fixá-lo definitivamente naquele lugar. Mesmo filiado ao partido comunista e favorável às teses do socialismo, Portinari teve a sua obra servindo de instrumento propagandístico do governo Vargas, como de resto a de muitos outros artistas e intelectuais do período, que viu no modernismo um aparato discursivo congenial às suas teses desenvolvimentistas. Mário tentou resolver essa contradição, um pouco a contrapelo, atribuindo o nacionalismo do amigo pintor a necessidades brotadas do inconsciente, de “forças psíquicas” que o ligavam à terra.

Miliciano – Espanha (Lívio Abramo), 1938

Lívio Abramo

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Obra de Lívio Abramo realizada em 1938 na técnica de xilogravura sobre papel, com

30 centímetros de altura por 22 centímetros de largura.

A imagem se apresenta como uma gravura de forma irregular, que ocupa a parte central do papel branco. O contorno é como o de um quadrado que não tem a ponta superior direita. O papel branco forma uma grande borda em volta da imagem de fundo preto, destacada pelos traços brancos.

Um homem (miliciano) está em uma pose altiva, enquadrado do peito para cima. Ele usa uma camisa de gola e botões, tem um olhar sério, está com o rosto virado em meio perfil para direita e segura uma carabina sobre o ombro esquerdo.

Ele tem as sobrancelhas grossas, o olhar decidido, os cabelos curtos, o rosto completamente barbeado, o nariz proeminente, os lábios grossos e o maxilar largo e quadrado.

O Miliciano espanhol, retratado em pose heroica, revela a preocupação de Lívio Abramo com os rumos da Guerra Civil Espanhola, que na época chocava o mundo.

Lívio Abramo

Lívio Abramo (1903-1992), que em seus inícios foi marcado pela produção do período antropofágico de Tarsila, a partir de 1935 também se voltou à representação de uma temática social, utilizando basicamente o desenho e a gravura (de extrato expressionista) para representações que denunciavam a guerra espanhola e as atrocidades de Franco.

Mais tarde, convidado para ilustrar uma edição de Pelo Sertão (1947), do escritor Afonso Arinos, Abramo passou a incorporar em sua gravura elementos mais sintéticos numa figuração que assimila desde a arte de Braque e Picasso até figuras estilizadas da pintura vascular grega antiga.

Essa mistura de elementos colhidos na história das artes, aliás, preconizada, como dissemos, a partir de 1918/1919 pelo retorno à ordem, vai se tornando mais e mais comum a partir das décadas de 1930 e 1940, graças também à produção de livros e edições refinadas. O acesso a essa história da arte, entendida agora como um patrimônio universal da humanidade e, ao mesmo tempo, como parte da genealogia da criação artística, consentida pelo próprio artista, contribuiu para a construção de narrativas particulares em torno de um acervo comum. Todos tinham ao seu alcance a arte de todos os tempos.

Di Cavalcanti, "A Realidade Brasileira"

Di Cavalcanti, que foi preso durante a Revolução Constitucionalista de 1932, no ano seguinte executou a série de doze desenhos intitulada A realidade brasileira (coleção IEB/USP), na qual produz caricaturas que satirizam a sociedade burguesa e o conluio entre a Igreja e o Militarismo.

Numa delas, A parada da vitória, um general trota aprumado em sua montaria, um cavalo. O animal é bem menor em relação ao seu corpanzil fardado e pesado, com a cabeça nas nuvens, seguido por um soldado de baixa patente, pequenininho, que vai recebendo as bolotas de estrume na cara durante a ridícula marcha triunfal.

A glorificação tola da pátria e da família como valores morais falsos a encobrir as violências e ações de descalabro dos mandatários do poder tornou-se alvo de muitos artistas naqueles anos. Mas, diferentemente de Di, que foi um exímio ilustrador, os outros se utilizarão mais dos gêneros tradicionais da pintura, assim como dos meios técnicos já conhecidos, para construir obras com valor de denúncia e de repúdio à escalada do autoritarismo no Brasil e no mundo, principalmente ao longo da década de 1940.

As deformações e estilizações que, nesse momento, já estavam incorporadas a um vocabulário comum da arte moderna, permitiram a esses artistas expressarem as suas posições político-sociais e, ao mesmo tempo, manterem-se dentro de proposições artísticas novas. O modernismo tornou-se algo implícito a todos eles, uma matéria-prima comum sobre a qual cada um imprimiu o seu temperamento.

É assim possível denotar nessas produções a continuidade de elementos formais, embora bem sedimentados e domesticados, das diversas tendências ou dos movimentos modernistas tais como o cubismo, o expressionismo, o surrealismo e o ecletismo, inclassificável, da assim chamada Escola de Paris.

A parada da vitória - nº 6 (Emiliano Di Cavalcanti)

Di Cavalcanti

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A Parada da Vitória é um desenho de Emiliano Di Cavalcanti sem data de realização especificada, feito em nanquim sobre papel com 32 centímetros de altura por 23 centímetros de largura.

O desenho, feito sobre papel branco já amarelado pelo tempo, tem traços pretos finos e precisos, com pontilhados e hachuras em algumas áreas, no estilo de uma charge. A charge é um tipo de ilustração que tem por finalidade satirizar, por meio de uma caricatura, algum acontecimento atual com uma ou mais personagens envolvidas.

Na obra há um homem montado sobre um cavalo, o homem usa um uniforme militar de gala e tem expressão altiva. Atrás dele vai marchando um soldado baixinho.

O homem sobre o cavalo veste um chapéu militar cônico com uma pluma sobre ele e uma pequena aba à frente. Seu rosto está de perfil e é desenhado com poucos detalhes: o olho é um círculo preto, os cabelos curtos e um bigode de ponta fina. Ele veste uma casaca com algumas medalhas no peito, uma faixa e dragonas nos ombros. A calça tem uma faixa lateral e ele usa botas pretas de cano longo. O cavalo que o homem monta tem uma expressão arredia, seu cabresto é adornado e ele está com uma das patas dianteiras erguida, como se estivesse marchando.

O soldado baixinho marcha a pé logo atrás do cavalo, que está defecando bem ao seu lado. Sua expressão é bem séria e tem os olhos arregalados. O soldado usa um capacete, casaco comprido, segura uma carabina apoiada no ombro e uma grande mochila nas costas.

Os únicos detalhes que indicam a ambiência da cena são duas nuvens no céu e traços sinuosos horizontalmente paralelos indicando o chão. Na margem inferior da obra está escrito “A Parada da Vitória”.

Hugo Adami

A investigação metafísica da cena banal, cotidiana, confundiu-se com a recidiva tentativa de continuidade da pintura a partir de seus gêneros tradicionais: natureza-morta, paisagem, retrato etc.

Hugo Adami (1899-1999), que foi companheiro de geração de Anita e Tarsila (estudou no Brasil com Alfredo Norfini, William Zadig e Georg Elpons), conclui o seu treinamento artístico na Itália, onde conheceu Giorgio De Chirico e participou da mostra do Novecento, em 1926.

A pintura Cebolas dessa data revela um desenho sólido e um tratamento muito seguro da cor, algo cezanneano. Os frutos, a toalha e o fragmento de uma garrafa plantada sobre a mesa informam, sem reversas, tratar-se de um arranjo que serve como álibi para a pintura: a escolha das cores, a divisão tonal etc., tudo isso é comum à natureza-morta como gênero e serviu inúmeras vezes como recurso à experimentação de muitos pintores. No entanto, ao olharmos para esse quadro, um incômodo aos poucos se insinua; algo estranho como sentimento agita-se por detrás da banalidade do assunto e da gratuidade do gênero.

Pátria, família e sociedade

Di Cavalcanti

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A glorificação tola da pátria e da família como valores morais falsos a encobrir as violências e ações de descalabro dos mandatários do poder tornou-se alvo de muitos artistas naqueles anos, que passaram a construir obras com valor de denúncia e de repúdio à escalada do autoritarismo no Brasil e no mundo, principalmente ao longo da década de 1940.

As deformações e estilizações que já estavam incorporadas a um vocabulário comum da arte moderna, permitiram aos artistas expressarem as suas posições político-sociais e, ao mesmo tempo, manterem-se dentro de proposições artísticas novas. Por outro lado, à medida que a escalada autoritária avançava, sob o Estado Novo e a ditadura de Getúlio Vargas, viu-se em toda parte a disseminação de estratégias de aliciamento e cooptação dos artistas modernistas pelas forças pró-fascistas e pró-nazistas de então.

Mário de Andrade e a arte interessada

A preocupação de Mário de Andrade em torno do compromisso do artista em se fazer comunicável, em fazer com que arte se fizesse entendida por outrem, por todos, ainda que se mantivesse o compromisso primeiro com os processos e demandas específicos da criação artística, alimentou desde o início de sua produção uma contradição que jamais seria solucionada.

Mário teve consciência disso. Em uma das passagens de sua Estética musical, Mário diz “A obra de arte é uma realização do amor”. Alguém que pudesse viver plenamente isolado, como Robinson Crusoé em sua ilha, careceria de um “desejo de amigo”. Não seria assim possível realizar obra de arte alguma se não se tem a quem dirigir-se amorosamente.

Para Mário, algumas épocas na história da humanidade encareceram “a reprodução insulada da beleza”; entretanto, diz ele “o fim propulsor da arte não foi a realização egoística e quase sáfara da beleza”. De modo geral, a questão de se fazer uma arte interessada misturava-se com a questão em torno da busca de uma identidade brasileira, ou pelo menos, de uma arte que olhasse para a realidade local demarcando uma crítica às ideias ou posições observadas no exterior.

Para Mário, se a realidade brasileira “pode ter pontos de contatos com a realidade contemporânea da esfaldada civilização do Velho Mundo, não pode ter o mesmo ideal porque as nossas necessidades são inteiramente outras”. Era, pois, preciso a construção de uma arte nacional, mas sem caráter ufanista, o que foi difícil nas décadas de 1930 e 1940, especialmente com a ascensão do governo Vargas e da escalada de um autoritarismo da extrema direita que necessitavam de símbolos vigorosos e simplórios ao mesmo tempo para a manifestação extremada de patriotismo.

Auto-retrato (José Pancetti), 1940

José Pancetti

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Obra de José Pancetti de 1940. Pintura em óleo sobre tela de 49 centímetros de altura por 38 centímetros de largura.

O artista se auto retrata do peito para cima, a cabeça está levemente voltada para esquerda, mas as pupilas pretas olham para frente. A pele tem uma tonalidade bege clara. Ele tem o pescoço comprido e veste uma camiseta branca.

Sua cabeça é comprida e bem arredondada, com a testa grande. Tem os cabelos raspados numa tonalidade acinzentada, assim como a barba por fazer. As sobrancelhas são pretas e grossas, os olhos são grandes, arredondados na parte superior e retos na inferior, estão levemente fechados, o que lhe confere um olhar desconfiado.

O nariz é grande, grosso, adunco e tem uma coloração avermelhada. As bochechas, na porção imediatamente ao lado do nariz, são fundas, desde a altura dos olhos até as laterais da boca. Essa característica facial, somada aos lábios contraídos, no qual o superior se sobrepõe ao inferior, quase o cobrindo por completo, dão ao semblante dele um ar contrariado.

O queixo anguloso é comprido e levemente retraído. À esquerda da cabeça sua orelha se pronuncia levemente.

O fundo da tela é neutro e todo bege, numa coloração um pouco mais clara que a pele do artista.

José Pancetti

José Pancetti

Como outros artistas do período, Pancetti buscou um caminho próprio (se utilizando ainda dos gêneros pictóricos tradicionais, paisagens, retratos, naturezas-mortas) no qual o moderno pode ser entendido como a tomada de uma atitude singular.

Por um lado, havia uma liberdade quanto à pesquisa, que diferentemente da de outros artistas do período, não teve nenhuma preocupação de engajamento social explícito. Por outro lado, essa atitude pode ser entendida como um processo de depuração formal e cromática que levaria o artista às fronteiras da abstração.

O Autorretrato, tela de 1940 (coleção do Instituto de Estudos Brasileiros) é exemplar quanto a essa depuração das formas, a cor sendo subsumida pelo desenho, tornando-se o próprio desenho. A solidez dos planos de cor e a simplificação dos traços fisionômicos produzem uma força estarrecedora ao retrato – um dos melhores já produzidos na arte brasileira.

Koch Grunberg e a maleta de ossos

No acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo há uma reedição de Macunaíma, de 1944, um exemplar de trabalho no qual Mário de Andrade fez diversas anotações às margens.

Talvez, o autor quisesse refazer a sua obra, talvez fosse só o hábito de se autocorrigir incessantemente, sem nunca ficar inteiramente satisfeito com os resultados obtidos.

Mas no meio do livro, achou-se um recorte de jornal com a mesma data, dando conta do achado casual dos restos mortais de Koch Grünberg dentro de uma mala depositada numa delegacia de polícia em Manaus.

A nota lembra que, falecido em 1924 em Vista Alegre (Rio Branco), a ossada foi trazida para Manaus a pedido do historiador Lima Cascudo. Esta notícia bem poderia ter sido lida por Mário de Andrade como o indício de que o modernismo, agora já transformado em passado, também carecia ser definitivamente sepultado.

Ficha técnica da exposição

Exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944] estreia em dezembro, no Centro Cultural Fiesp

Considerada a maior mostra sobre o modernismo brasileiro já realizada, reúne mais de 300 obras e documentos inéditos sobre a intimidade dos artistas e pensadores modernistas

A exposição Era Uma vez o Moderno [1910-1944] é uma parceria do Centro Cultural Fiesp (CCF) e o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), instituição que guarda o maior acervo sobre o modernismo no país.

A mostra reúne diários, cartas, manuscritos, fotos e obras dos artistas e intelectuais que fizeram parte de diversas iniciativas em torno da implantação de uma arte moderna no Brasil, entre 1910

e 1944. Contando com mais de 300 obras e documentos, fará o público revisitar três décadas dessa história e, em especial, conhecer as produções dos autores e pensadores que participaram da Semana de Arte Moderna, em 1922, cujo centenário se dará em fevereiro do próximo ano.

O público encontrará as obras e reflexões de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Osvaldo Goeldi, Ismael Néry, Guilherme de Almeida, Gilberto Freire, entre muitos outros.

A exposição pretende mostrar a dimensão humana das mulheres e homens que participaram do debate em torno da possibilidade de se fazer uma arte moderna no Brasil, assim como a diversidade de manifestações e direções do que se convencionou chamar de modernismo brasileiro.

Era Uma vez o Moderno entra em cartaz no dia 10 de dezembro de 2021 e segue aberta à visitação gratuita até 29 de maio de 2022. Quem preferir programar a visita deve acessar o site www.sesisp.org.br/eventos

A curadoria da mostra é do professor e pesquisador do IEB/USP, Luiz Armando Bagolin, e do historiador Fabrício Reiner. A exposição, que é a maior sobre o modernismo brasileiro já realizada no mundo, tem como proposta apresentar uma sequência de fatos históricos e culturais por meio das próprias vozes, influências e até mesmo dos dilemas e conflitos dos artistas que viveram o modernismo.

Em uma faixa de tempo que compreende os anos de 1910 a 1944, o público poderá mergulhar na intimidade daqueles que construíram este movimento cultural a partir da leitura de cartas como, por exemplo, aquela escrita por Mário de Andrade para Tarsila do Amaral, em 1929, na qual ele comunicava o rompimento da relação de amizade com o também modernista Oswald de Andrade.

Os visitantes poderão conhecer o diário de Anita Malfatti, de 1914, que registra os preparativos da sua primeira exposição individual, realizada em São Paulo. E para a experiência ficar ainda mais real, os visitantes poderão assistir vídeos protagonizados por atores que interpretam alguns artistas modernistas em momentos importantes de suas vidas bem como da história do movimento cultural.

Em um dos corredores da exposição, o personagem virtual de Mário de Andrade lê um trecho do livro Pauliceia Desvairada, durante a segunda noite da Semana de Arte Moderna. Na ocasião, nervoso, o poeta tremia de timidez. Em outro momento, a figura de Manuel Bandeira, interpretada no vídeo pelo ator Nilton Bicudo, lê uma carta que o poeta pernambucano escreveu e destinou a Mário de Andrade, criticando o movimento Pau Brasil, de Oswald de Andrade, num momento cheio de humor.

Em outros dois pontos relevantes da mostra, o personagem virtual de Tarsila do Amaral lê uma carta datada de 1920, na qual, de Paris (França), escreveu para Anita Malfatti relatando seus primeiros encontros com a arte moderna, em particular, com o futurismo italiano de Umberto Boccioni, que então a escandalizou.

O tom melancólico de Mário de Andrade nas palavras que estão no bilhete escrito e nunca enviado por ele a Manuel Bandeira, em 1944, mostra a preocupação do artista no convertimento dos seus colegas modernistas pelo Estado Novo, de Getúlio Vargas.

Entre os quadros que estarão na mostra Era Uma Vez o Moderno, O Homem Amarelo, um dos mais conhecidos de Anita Malfatti. A pintura esteva na Exposição de 1917 e na Semana de Arte Moderna de 1922. A obra O Mamoeiro, de Tarsila do Amaral, finalizada em 1925, também estará exposta na Avenida Paulista. Neste quadro, a artista buscou representar a realidade da época fazendo uso de cores fortes e formas geométricas influenciadas pelo cubismo e pela arte do francês Fernand Léger, seu mestre.

Também será possível conhecer os objetos, diários e fotos que foram resultados das viagens de Mário de Andrade à região Amazônica e às cidades do Norte e Nordeste do Brasil, comprovando seu interesse pela pesquisa de caráter etnográfico.

A mostra trará algumas das manifestações apresentadas na Semana de Arte Moderna irmanadas pelo desejo de ruptura com a arte do passado e pretende apresentar a correspondência entre as obras dos artistas com as cartas, os manuscritos e os demais itens do acervo pessoal deles. “Nossa proposta de linha do tempo tem início em 1910 com os registros que farão o público conhecer um pouco da primeira exposição brasileira da artista alemã Emma Voss, que pela primeira vez trouxe para o Brasil obras que tiveram relação com as primeiras vanguardas artísticas europeias", explicou Bagolin.

Ao longo da exposição, haverá à disposição do público áudios acessíveis por QRCODE com comentários e análises feitas pelo curador, além de outras informações históricas e reproduções em formato digital dos documentos e cartas presentes na exposição. Tudo para que ninguém perca nenhum momento importante desta incrível história.

Exposição Era Uma Vez o Moderno

Período expositivo: de 10 de dezembro de 2021 a 29 de maio de 2022.

Horários: de quarta a domingo, das 11h às 20h.

Local: Galeria de Arte do Centro Cultural Fiesp.

Endereço: Avenida Paulista, 1313 (em frente ao Metrô Trianon-Masp)

Entrada gratuita.

Agendamento de visitas em:  www.sesisp.org.br/eventos

Agendamentos escolares e de grupos:  ccfagendamentos@sesisp.org.br

Mais informações:  www.centroculturalfiesp.com.br

Informações para Imprensa:

Centro Cultural Fiesp (CCF) e Sesi-SP

Mariana Soares

(11) 3549-4484 / (11) 97502.6242

mariana.sores@sesisenaisp.org.br


Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner
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