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35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível

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São Paulo

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Pavilhão da Bienal

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6 de setembro a 10 de dezembro de 2023

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Introdução

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Olá, eu sou a Stephanie Ribeiro, arquiteta, escritora, palestrante e feminista que acredita na arte, design, cultura e na responsabilidade social do arquiteto para uma sociedade mais justa e igualitária. Em 2015, recebi da Assembleia Legislativa de São Paulo a Medalha Theodosina Ribeiro pelo meu ativismo. Sou uma das autoras do livro "Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade", de Heloísa Buarque de Hollanda, vencedor do Prêmio Rio. No ano de 2018, fui uma das brasileiras no prêmio MIPAD e, em 2020, fui uma das personalidades brasileiras da Forbes Under 30 e me tornei apresentadora de um programa de decoração.

Eu, a Isa Silva, o Renan Quinalha, a Dandara Queiroz e a Luanda Vieira vamos acompanhar você pela 35ª Bienal de Artes de São Paulo – coreografias do impossível.

A mostra conta com a curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. A proposta de formar um grupo com uma relação horizontal, sem a figura de um curador-chefe, foi uma sugestão da própria equipe de curadores e é parte constituinte do projeto da 35ª Bienal.

Segundo os curadores: “Enquanto proposta curatorial, coreografias do impossível se articula como um espaço de experimentação, aberto às danças do inimaginável, que se encarna em movimentos capazes de transformar o aparentemente não-existente, em existente. Esta ideia de coreografia se baseia na natureza enigmática do fato artístico e, portanto, em tudo aquilo que não está esgotado, nem evidente. No que podemos nomear como segredo, mistério ou o próprio infinito. Estes são elementos resilientes, portanto de ruptura, e consequentemente de uma tentativa de liberdade.”

Eles dizem também que: “O termo coreografia realça a prática de desenhar sequências de movimentos que atravessam o tempo e o espaço, criando várias e novas frações, formas, imagens e possibilidades, apesar de toda inviabilidade, de toda negação. Neste caso, o que interessa são os ritmos, as ferramentas, as estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos, econômicos e jurídicos que saberes extradisciplinares são capazes de fomentar, e assim produzir a fuga, a recusa e seus exercícios poéticos. O impossível se apresenta de modo indefinido, pois compreende-se que suas violências generativas estão também além do que se pode imaginar. São muitas vezes imensuráveis, muitas vezes indescritíveis e inimagináveis.”

Para José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal de São Paulo, a mostra representa um novo capítulo e legado para a instituição. Ele enfatiza: “A 35ª Bienal de São Paulo é um marco histórico que transcende as fronteiras do impossível. Estamos testemunhando a convergência de artistas excepcionais, ideias transformadoras e um diálogo incisivo sobre as questões urgentes do nosso tempo. Essa exposição se tornará um legado duradouro, inspirando gerações futuras e redefinindo os limites do que é possível na expressão artística.”

Antes de começar a falar sobre as obras, vou contar um pouco sobre o que você vai ouvir por aqui. Como a exposição é muito grande, tem mais de mil obras, seria impossível falar sobre todas elas. Então escolhemos obras de 20 artistas que compõem a mostra para criar um trajeto que se inicia no piso verde, passa pelo piso azul e termina no piso roxo, seguindo o percurso proposto pela curadoria e arquitetura.

Pense nas nossas faixas como pontos-chave, ou paradas estratégicas dentro da sua visita. Em cada uma dessas paradas, eu, a Isa, o Renan, a Dandara e a Luanda, vamos apresentar as histórias por trás das obras, falar um pouquinho sobre is artistes e descrever essas peças. Isso porque nem todo mundo vê as coisas da mesma forma, e este é um audioguia inclusivo. A gente quer que esse audioguia seja para todo mundo mesmo, por isso ele também está disponível na Língua brasileira de sinais (LIBRAS).

Vamos lá?!

Este audioguia é uma realização da Fundação Bienal de São Paulo e conta com a consultoria de acessibilidade da Mais Diferenças.

Ibrahim Mahama

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Estamos diante da instalação de Ibrahim Mahama. Ele é da parte norte de Gana, de uma cidade chamada Tamale, a terceira maior cidade do país. Ele começou a estudar arte no ensino médio. Foi pintor figurativista por muitos anos, até que, em 2010, quando viajava muito pelo país, olhando, conhecendo mercados, espaços antigos e abandonados, passou a imaginar como repensar a arte de forma a redistribuí-la. A partir daí, deu início à criação de instalações esculturais que envolvem sacos de juta sobre estruturas arquitetônicas, como o Teatro Nacional em Accra, Gana, ou o Arsenale, na Bienal de Veneza de 2015, na Itália.

Ibrahim Mahama trabalha com materiais que contam uma história de economia e comércio global, áreas cruciais na sua investigação artística. Nos últimos anos, Mahama estabeleceu, em Tamale, Gana, três instituições culturais que procuram usar história e arquitetura como ferramentas educativas: o Savannah Centre for Contemporary Art, o Red Clay Studio e o Nkrumah Volini.

Para a 35ª edição da Bienal, Mahama concebeu uma instalação que estabelece um diálogo profundo com seu trabalho anterior, também denominado "Parliament of Ghosts", ou, em tradução livre, "Parlamento dos Fantasmas". O espaço recriado aqui reproduz as arquibancadas feitas de tijolos vermelhos do salão de seu estúdio RED CLAY, em Tamale, Gana. Na instalação, também há um conjunto de vasos típicos de Gana e trilhos de ferrovias, símbolo da colonização inglesa em seu país. Esta representação relembra a história da empresa ferroviária de Gana, a Ghana Railway Company.

A obra é dividida em três partes que estão espalhadas por esse piso do pavilhão: a arquibancada de tijolos, os 146 vasos e o trilho de trem.

A arquibancada tem um formato retangular com cerca de 150 metros quadrados. Em formato de arena, a arquibancada tem três níveis de degraus onde as pessoas podem se sentar. Ela tem quase um metro de altura e foi construída com milhares de tijolos de barro vermelhos.

Os 146 vasos estão próximos à arquibancada de tijolos. Eles variam entre 70 e 90 centímetros de altura, são todos de terracota com uma coloração marrom escura. Oitenta desses vasos foram produzidos no Brasil e são réplicas dos outros 66 vasos que vieram de Gana. Esses vasos que vieram de Gana apresentam marcas do tempo, por serem antigos e terem sido desenterrados.

O trilho está um pouco mais afastado desses dois conjuntos. Ele tem 51 metros de extensão por um metro e quarenta centímetros de largura. Ele é uma referência aos trilhos da companhia inglesa que passavam onde hoje é o estúdio de Mahama em Gana. Os longos trilhos de metal estão assentados sobre dezenas de dormentes de madeira.

A respeito de suas criações, o artista nos conta: “não é possível pensar em fazer arte sem pensar sobre capital e situações econômicas. E a ideia da pedagogia se inscreveu no trabalho, na forma de fazê-lo. E eu usei o trabalho como um meio de selecionar materiais cuidadosamente. E passei a ser cuidadoso com os materiais e o porquê deles, as histórias inscritas neles e quais potenciais eles carregam. Então esse é basicamente o tipo de trabalho que eu faço.”

Kidlat Tahimiki

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"Você já ouviu falar sobre o Igpupiara, o 'monstro' mitológico do Brasil, sobre o qual Pedro Magalhães escreveu em 1564?"

Com essa pergunta, o artista filipino Kidlat Tahimik nos convida à imersão em sua instalação, intitulada "Killing us Sotly… with their SPAMS… (Songs, Prayers, Alphabets, Myths, Superheroes…)", traduzido livremente como Nos matando suavemente... (com suas músicas... histórias, alfabetos, rezas, mitos... super-heróis...), inspirada na música de Charles Fox e Norman Gimbel.

Tahimik nasceu em 1942 na cidade de Baguio, Filipinas, onde vive até hoje. Além de ser autor de instalações de grande porte, Tahimik também é um renomado cineasta independente.

Na obra aqui apresentada, Tahimik convoca entidades mitológicas ancestrais para confrontar narrativas coloniais e imperialistas. Ao lado de Igpupiara, termo tupi que significa monstro marinho, o artista também convoca Syokoy, entidade mítica, espécie de homem-sereia, dos povos filipinos. Assim, ele traça uma conexão entre as mitologias de povos indígenas do Brasil e das Filipinas. As figuras de Igpupiara e Syokoy personificam o assassinato de imaginários tribais, um profundo e implacável genocídio cultural que amplifica sua tragédia com o capitalismo ecocida racial, como menciona Carles Guerra para o catálogo desta Bienal. "Esse é apenas um capítulo da viagem de circunavegação do explorador Fernão de Magalhães, na qual a invasão abre espaço para a necropolítica que se estende para muito além dos seres humanos".

A instalação monumental de Kidlat tem aproximadamente 300 metros quadrados e em alguns pontos chega a sete metros de altura. A instalação é, em sua maior parte, feita em madeira, mas também conta com esculturas em pedra, e todos os elementos apresentados têm tamanho semelhante ao real. Ao centro está uma espécie de aldeia circular, com um espaço no meio. Este espaço é cercado por moradias indígenas. Em volta da aldeia estão grossos troncos de árvore, e sobre ela paira um helicóptero. A respeito dessa parte da instalação, o artista diz o seguinte: “Vista de Helicópteros Deus-Ex-Machina: primitivos protegidos por uma Fortaleza Verde. Está escrito nos rostos dos índios – sua harmonia Kultur com seus dosséis verdes. Enquanto observam os helicópteros acima, as tribos isoladas da Amazônia sentem intuitivamente que o alto chug-a-chug-chug das hélices do helicóptero está predizendo a chegada de motosserras ensurdecedoras.”

Em volta dessa cena central, as ameaças vêm de todos os lados. Um cavalo de tróia; uma enorme caravela, que tem na sua ponta uma escultura de um barco militar com soldados usando capacetes de metal e armados com motosserras; e até um submarino.

Denilson Baniwa

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Natural de Barcelos, no estado do Amazonas, Denilson Baniwa é um artista e ativista pelos direitos dos povos indígenas. Do povo Baniwa, atualmente reside e desempenha suas atividades em Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Nos últimos anos, vem investigando formas de introdução de temporalidades indígenas em instituições artísticas não indígenas. Ele é um dos mais destacados artistas de sua geração, além de curador e articulador de cultura digital, contribuindo para a construção de uma imagética indígena em diversos meios. Seu trabalho já foi exposto em prestigiados locais e recebeu diversas premiações.

Estamos no espaço dedicado à obra "Kaá", uma plantação de milho do Povo Guarani, uma das três que compõem o projeto de Baniwa para esta Bienal, chamado "Kwema / Amanhecer". Como ele próprio diz, "As coreografias de sobrevivência e resistência do povo Baniwa desde o início dos tempos deu-se pela administração do caos e fins-de-mundo [...] Reconstruindo-se após as tragédias mitológicas e dos contatos com os brancos, os Baniwa continuam dançando e cantando, apesar das violências sofridas e entendendo tudo o que foi perdido ou amputado de sua cultura, se reorganizando e reinventando suas práticas. Incluindo elementos adquiridos pelo contato com o ocidente em suas realizações culturais. Amanhecer é entender que um novo dia surge após uma pesada noite, e que ainda podemos realizar o Pudali, festa tradicional onde se troca conhecimentos, alimentos e possibilidades de existência num mundo em constante transformação. Alimentando memória e corpo."

Além de "Kaá", o projeto também conta com "Itá", composto de duas rochas com inscrições em baixo relevo, desenvolvido em conjunto com a pesquisadora Francineia Baniwa, para contar as histórias da cosmogonia do povo Baniwa e dos primeiros contatos com os brancos; e "Tatá", um painel de líber, que é uma entrecasca de árvore, com pinturas e técnicas de plumagem Baniwa, desenvolvido em conjunto com a artista Aparecida Baniwa, contando sobre os primeiros contatos com a Igreja Católica no Rio Negro e suas violências coloniais-religiosas. Nesta faixa conheceremos com mais detalhes a primeira delas, "Kaá".

A obra "Kaá" é, literalmente, uma plantação de milho. É uma enorme estrutura de madeira de aproximadamente 250 metros quadrados, cheia de terra, com bordas de contenção de cerca de meio metro de altura. Na terra há pés de milho, que foram plantados e irão crescer ao longo do tempo da exposição. A instalação como um todo tem uma forma quase retangular.

Há um caminho vermelho que atravessa a plantação por onde podemos caminhar, a partir da entrada. O caminho não é linear, mas com viradas em ângulos de 90 graus. Ao final deste caminho, chegamos a um espaço circular, como aqueles das aldeias indígenas, rodeado por uma arquibancada com dois degraus onde podemos nos sentar e compartilhar momentos com outras pessoas. No meio deste círculo está uma grande pedra.

Ao final da exposição espera-se realizar uma colheita e preparo de alimentos com o milho colhido, servidos em um almoço coletivo. Esse trabalho será feito em conjunto com a professora Jerá Guarani e jovens da comunidade Guarani de São Paulo. Como diz Renato Menezes, nesta Bienal "Denilson Baniwa aprofunda sua pesquisa sobre a integração entre obra e comunidade, complexifica os procedimentos técnicos que permitem a passagem do campo da representação para o da vivência e faz aparecer a possibilidade da colheita e da alimentação como efetivação do ato da partilha e da reelaboração da memória."

Emanoel Araújo

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Emanoel Araujo nasceu em 1940, foi artista plástico, escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Baiano, pertencia a uma tradicional família de ourives. Muito jovem, aos 13 anos, mergulhou no universo gráfico como funcionário da Imprensa Oficial de sua cidade.

São da década de 1960 as primeiras participações dele em exposições e sua atuação profissional em museus. Seus anos iniciais em São Paulo resultam em dois projetos de fôlego, que mudariam a paisagem das artes paulistanas — "A Mão Afro-Brasileira", exposição realizada em 1988 no MAM, e seus dez anos à frente da Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 1992 a 2002. Em 2004, fundou o Museu Afro Brasil, em São Paulo, do qual foi Diretor Curador até a sua morte em 7 de setembro de 2022.

Sobre a obra de Araujo presente na 35ª Bienal, Horrana de Kássia Santoz nos conta: “Na obra exposta aqui, um monumental relevo, é possível constatar o modo como [o artista] constrói ritmo e movimento, criando peças com dinamismo visual e com uma sensação de fluidez marcante. [...] Tais características formais ajudam a definir a estética e a identidade do trabalho de Araujo, posicionando-o como membro da segunda geração construtivista brasileira. Nesta obra se observa o uso da madeira, bem como a abordagem estilística marcada pela geometria.”

Trata-se de uma obra composta por seis painéis quadrados, fixados na parede lado a lado e que ao todo formam uma peça de treze metros de largura por mais de dois metros de altura. Trata-se de uma obra abstrata, composta por formas geométricas conjugadas. Os painéis são todos brancos e volumétricos, formados por barras triangulares de cerca de quinze centímetros de largura posicionadas na diagonal em diferentes ângulos e direções. Essas barras se cruzam, se sobrepõem e se justapõem formando relevos geométricos. Nesta obra, o artista aproxima-se das vertentes construtivas, reduzindo as figuras a estruturas primárias.

Torkwase Dyson

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Oi, eu sou ISA Isaac Silva, estilista baiana, empresária, influenciadora no segmento da moda, consultora e palestrante. Sou conhecida por desenvolver uma moda inclusiva, com roupas sem gênero, inspirada na visão e vivência afro e indígenas.

Vou seguir com você nas próximas quatro faixas deste audioguia.

Você já se perguntou como nossos corpos se comportam em diferentes espaços?

Para a 35ª Bienal, Torkwase Dyson apresenta uma instalação inédita, comissionada para a mostra, que investiga essa questão. Dyson é uma mulher negra nascida em 1973, em Chicago, Estados Unidos, e considera as relações espaciais uma questão urgente, tanto no contexto atual quanto historicamente, devido à instrumentalização violenta da arquitetura pelo colonialismo. Ela pensa sobre as maneiras pelas quais corpos negros e pardos agenciam os espaços naturais e construídos, bem como suas estratégias de auto-emancipação e libertação espacial. Assim, Dyson busca criar geografias mais habitáveis ou, como ela mesma descreve, busca "fazer formas que celebrem as possibilidades".

A obra de Torkwase Dyson é formada por três estruturas pretas, que parecem monumentos triangulares. Mas, ao invés da parte superior ser pontiaguda, tem uma forma arredondada. Todas possuem as mesmas dimensões: aproximadamente três metros e meio de altura, um metro e meio de profundidade e dois metros e vinte centímetros de largura. Cada uma das estruturas é composta por duas partes iguais, como se o triângulo tivesse sido cortado ao meio. Sobre essas duas metades há uma chapa de metal que as envolve desde a base e faz um arco na parte superior. Isso faz que haja um vão entre as duas metades por onde é possível passar uma pessoa. As três estruturas estão dispostas uma atrás da outra, como em uma fila indiana, com um espaço de aproximadamente sete metros entre cada uma delas.

Para a criação dessa instalação, Dyson realizou sua pesquisa numa ruína chamada Casa da Torre de Garcia d'Ávila, localizada no município de Mata de São João, na Bahia. Historicamente, foi propriedade de Garcia d'Ávila, homem conhecido por ter perpetrado um regime atroz de escravidão indígena e das populações negras entre os séculos 16 e 18. Nas fotos atuais, as ruínas dessa Casa têm paredes feitas de pedras enegrecidas e entradas em formatos de arco.

Aline Motta

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“Estou grávida da minha mãe. Chegou a minha vez de te carregar na barriga.”

Essa é a primeira frase do filme “A ÁGUA É UMA MÁQUINA DO TEMPO”, de Aline Motta. E não é só o filme que se apresenta para nós, há também um grande holograma da mãe de Aline. Em uma imagem em preto e branco, a mãe está sentada em um banco. Ela é uma mulher negra, com cerca de 25 anos. Está com as mãos apoiadas sobre as coxas e nos olha com ternura. Seus olhos piscam e seu tórax se movimenta levemente enquanto respira.

Aline Motta nasceu em Niterói, no Rio de Janeiro, em 1974, e mora em São Paulo. Combina diferentes técnicas e práticas artísticas em seu trabalho, como fotografia, vídeo, instalação, performance e colagem. De modo crítico, suas obras reconfiguram memórias, em especial as afro-atlânticas, e constroem novas narrativas que invocam uma ideia não linear do tempo.

Em uma de suas provocações, a artista nos questiona: “Se quebro com o silêncio, que identidades se tornam possíveis? O que pode vir à tona quando estou à procura de mim mesma? Entre os sussurros dos que vieram antes de mim, os espaços que foram impedidos de ocupar, as narrativas que foram borradas, o que resta como possibilidade de expressão e linguagem?”

Em “A ÁGUA É UMA MÁQUINA DO TEMPO”, Aline Motta compõe um fluido mosaico a partir de registros históricos e tece uma intrincada rede de diferentes planos temporais. Nesse percurso, ela passa pela tristeza da perda de sua mãe até chegar ao Rio de Janeiro no final do século dezenove. Passa por fragmentos documentais que meticulosamente ressuscitam as vivências de Ambrosina e Michaela, suas antepassadas.

Unindo de forma ímpar criatividade e investigação, Aline Motta revela as diversas maneiras pelas quais a herança colonial provoca borrões em nossa narrativa histórica. Sobre o texto que deu origem ao filme, Ricardo Aleixo diz o seguinte: “Na busca por dar forma a essa tentativa de capturar o talvez inexprimível – os espaços vazios, as rachaduras, os vincos, os elos invisíveis, os recantos escondidos da história –, Aline nos presenteia com uma obra que, em suas próprias expressões, resulta de um processo criativo tão apaixonado e desgastante que poderia ser facilmente categorizado como uma espécie de domínio.”

No filme colorido de 31 minutos, Aline evoca imagens atuais e históricas da Baía de Guanabara. Transita como um fantasma pelo centro histórico do Rio de Janeiro, passa por igrejas históricas da cidade, chega ao cemitério São João Batista e depois aos arcos da Lapa. O passado e o presente se encontram em cartas e bilhetes, em sussurros de línguas ancestrais, entre os caminhos que fazem as águas.

Melchor María Mercado

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Chegamos a uma sala fechada, com as paredes pintadas de vermelho vivo. A sala é dedicada à obra "Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes”, do artista boliviano Melchor María Mercado. Estão expostas setenta ilustrações, de um total de cento e quarenta e uma, feitas com aquarela e tinta colorida sobre papel branco. Cada uma mede 20,5 centímetros por 33 centímetros. Estão dispostas umas ao lado das outras, em vitrines que são iluminadas de dentro para fora. Essas vitrines ocupam toda a extensão de três paredes da sala, formando um U.

As aquarelas foram produzidas entre 1841 e 1869, período de início da República da Bolívia, embora tenham sido exibidas pela primeira vez mais de um século depois, em 1991. Na época de sua criação, predominavam os relatos sobre a vida nesse país de uma perspectiva europeia sobre as colônias. As ilustrações de Mercado constituem um conjunto valioso justamente porque tencionaram contar uma história da Bolívia a partir da perspectiva de uma pessoa boliviana. Afinal, uma história contada por alguém que a viveu seria muito diferente daquela contada pelos colonizadores. Como diz Beatriz Martínez-Hijazo para o catálogo desta Bienal, "indo na contramão da historiografia tradicional e do gosto neoclássico predominante, Melchor María Mercado tece outras formas de 'narrar a nação'".

Melchor María Mercado nasceu na cidade de Sucre, Bolívia, no ano de 1816, e faleceu em 1871. Ao longo de sua vida, exerceu diversos ofícios, tanto científicos quanto artísticos. Seu interesse por pintura, pela história natural e pela política o levou a percorrer todas as regiões do território boliviano, o que possibilitou a realização desse importante trabalho iconográfico.

As ilustrações revelam aspectos da cultura, arquitetura e natureza boliviana: costumes e hábitos das pessoas, sobretudo de personagens populares em cenas da vida cotidiana; detalhes das suas ferramentas e instrumentos de trabalho; trajes típicos; artefatos de suas festividades; cosmologias, mitos e tradições. Sua obra também evoca o entorno natural, como as montanhas, os rios, as plantas e os animais, e paisagens rurais e urbanas, como cidades, povos, jardins, igrejas e monumentos. Aqui, o que era marginalizado pelo poder colonial passa a protagonizar a narrativa: navegantes do lago Titicaca, mulheres "del oriente", cegos, cholas, mestizas, indígenas, animais... Uma narrativa do povo boliviano para o povo boliviano.

Importante notarmos que alguns dos elementos pictóricos evocam o realismo fantástico e suscitam reflexões políticas. Nas ilustrações, por exemplo, é comum que nobres colonizadores sejam retratados sendo decapitados; ou que comunidades bolivianas apareçam em lugar de superioridade em relação aos colonizadores. Por outro lado, Mercado também suscita uma reflexão sobre as relações humano-animais, muitas das vezes invertendo as posições –- pessoas sendo devoradas por bichos ou em posição de animais de carga.

Judith Scott

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A artista estadunidense Judith Scott, nascida em 1943 e falecida em 2005, teve seu encontro com a arte em 1987, já na vida adulta, no Creative Growth Art Center, um inovador programa artístico voltado para artistas com deficiência. Ela tinha síndrome de Down e era surda, não tendo desenvolvido linguagem oral. Viveu trinta e cinco anos em uma instituição para pessoas com deficiência, excluída do convívio social e familiar. Após este período, foi reencontrada pela sua irmã gêmea, Joyce, que a levou para viver com ela em Oakland, Califórnia.

Nos seus primeiros meses no Creative Growth, Scott expressou-se por meio de cores, círculos e padrões repetitivos no papel, ocasionalmente incorporando imagens recortadas de publicações. Sua incursão no âmbito escultural começou quando a artista Sylvia Seventy apresentou-lhe diversas técnicas têxteis, como tecelagem e bordados com diferentes tipos de fios e tecidos.

Durante os dezessete anos seguintes, Judith Scott desenvolveu notáveis esculturas, construídas a partir de objetos encontrados e materiais diversos, meticulosamente envoltos e entrelaçados em fios e fibras variadas, fazendo dos fios poesia.

As formas abstratas de suas esculturas envolventes eram concebidas a partir de elaboradas estruturas artesanais que envolviam materiais descartados ou resgatados, frequentemente camuflando estruturas internas ou ocultando tesouros. Sua abordagem caracterizava-se por sua autonomia criativa, orientação intrínseca e pela ausência de repetição de formas ou esquemas de cores nas suas obras têxteis multifacetadas.

Durante sua permanência no Creative Growth, Judith Scott produziu quase cem esculturas, continuando sua prática até o ano de seu falecimento, em 2005.

Scott ocultava pequenos segredos sob diversas camadas de fios e cabos, incorporando uma variedade de objetos nas suas obras – de ventiladores a CDs, de guarda-chuvas antigos a carretéis de papelão. Esses elementos eram consistentemente entrelaçados e protegidos por guarnições de metal, envolvidos em lã até atingirem uma forma final suave e reconfortante.

A presença de itens escondidos nas peças é de fundamental importância, conferindo uma sensação orgânica às mesmas – afinal, há algo pulsante que reside dentro das formas. Seu processo criativo geralmente se estendia por cerca de três semanas, e Judith Scott determinava o momento de sua conclusão com firmeza e autonomia, mas num gesto suave de puro afago ou afeição de despedida.

Elizabeth Catlett

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Olá! Sou Renan Quinalha, paulistano, advogado em direitos humanos e cientista social. Trabalho como professor de Direito na Universidade Federal de São Paulo, onde também coordeno o Núcleo TransUnifesp. Como homem gay, tenho engajamento no ativismo LGBTQIA+ e já publiquei alguns livros sobre a temática da diversidade sexual e de gênero. Desde junho, sou editor da coluna Livros e Livres da Revista 451. Recentemente, fui nomeado presidente do Grupo de Trabalho de Reparação Histórica à População LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania do Brasil.

Vou te acompanhar aqui nas próximas quatro faixas.

Chegamos às obras de Elizabeth Catlett, artista que se apresentava da seguinte maneira: “Sou negra, mulher, escultora e gravurista. Também sou casada, mãe de três filhos e avó de cinco garotinhas (agora sete meninas e um menino). Todos esses estados-de-ser influenciaram meu trabalho e os tornaram isso que você vê hoje.”

Nascida em 1915 e falecida em 2012, Catlett viu seus 96 anos completarem um ciclo de vida marcado por sua notável expressão artística. Sua produção se caracteriza pela representação visual altamente carregada de uma postura política crítica, dando forma a imagens de mulheres envolvidas em trabalhos árduos, bem como outros agentes que desafiaram o racismo e a violência sofrida pelas comunidades afro-americanas e indígenas.

Sua trajetória como pintora e escultora estadunidense foi moldada por obstáculos, incluindo a exclusão da Universidade Carnegie-Mellon, motivada unicamente pela cor de sua pele. Resiliente, ela continuou sua jornada educacional na Dunbar High School em Washington, onde teve o privilégio de estudar com a influente Lois Mailou Jones. Na sequência, na Universidade de Iowa, estudou com o pintor Grant Wood, reconhecido por suas telas retratando a paisagem e os habitantes rurais dos Estados Unidos.

Em 1946, um novo capítulo começou para Catlett quando foi agraciada com uma bolsa da Julius Rosenwald Fund. Esse suporte impulsionou o início de uma série que se inspirou nas mulheres trabalhadoras da Carver School, ao mesmo tempo em que abriu as portas para uma experiência de vida no México. Ali, ela decidiu fixar residência, mergulhando nas cores e nas culturas que definiriam uma parte significativa de sua produção artística. Atuou no Taller de Gráfica Popular de 1946 a 1966, na Cidade do México, junto a outros artistas como Charles White, John Woodrow Wilson, Leopoldo Méndez e Margaret Taylor Goss Burroughs, que também têm obras na exposição.

Nessa nova fase de sua vida, suas convicções em prol dos direitos civis e do empoderamento da comunidade negra permaneceram profundamente arraigadas. Em 1962 foi declarada "persona non grata" nos EUA , isso devido à influência do macarthismo. Ela obteve um visto especial para retornar ao seu país natal na ocasião de uma retrospectiva de seu trabalho no Studio Museum do Harlem, quando já era conhecida pela alcunha de "mãe do Movimento de Arte Negra." Catlett só teve sua cidadania estadunidense restabelecida em 2002.

De um conjunto de gravuras de Catlett expostas nesta 35ª Bienal destacamos duas delas: “My Reward Has Been Bars Between Me And The Rest Of the Land” [Minha recomenpensa tem sido barras entre mim e o resto da terra] e “Negro es Bello II”.

A primeira, uma linogravura de 1946, mede 11 centímetros de altura por 15 centímetros de largura. A obra em preto e branco tem traços bem marcados e mostra uma mulher negra atrás de uma cerca de arames farpados. Ela é retratada do peito para cima, com uma expressão severa, o nariz proeminente, os lábios grossos e os olhos bastante expressivos. Seus cabelos são curtos e pretos e ela usa uma blusa escura de gola clara.

A litografia de 1969, “Negro es Bello II”, tem 45 centímetros de altura e 41 centímetros de largura. Nela estão dois rostos negros com traços angulosos. O de cima tem uma expressão séria e destemida, e é mostrado levemente de perfil. O de baixo tem uma expressão melancólica, com o olhar para baixo, demonstrando certa tristeza, e é mostrado de frente. Sobre os dois rostos estão cerca de 60 selos redondos e amarelos. Neles há a imagem de uma pantera e está escrito: “black is beautiful”. Este selo se refere ao movimento criado em 1960 pelos Panteras Negras com o intuito de exaltar a beleza das pessoas negras.

Ayrson Heraclito e Tiganá Santana

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Chegamos agora à "Floresta de infinitos", instalação de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana.

Ayrson Heráclito nasceu em 1968 em Macaúbas, na Bahia. É artista visual, pesquisador, curador e professor. Suas obras vêm sendo apresentadas em importantes mostras individuais e coletivas, tanto nacionais quanto internacionais. Tiganá Santana nasceu em 1982 em Salvador, Bahia. É compositor, cantor e professor de arte da Universidade Federal da Bahia. Possui vários trabalhos artísticos reconhecidos internacionalmente, bem como uma pesquisa em torno de pensares bantu-africanos.

Como diz Luciana Brito no catálogo desta exposição, Ayrson e Tiganá realizam aqui "um tributo à floresta, uma oferenda às forças da natureza, louvando sua energia resguardada entre plantas e árvores, que tornam possível a existência da humanidade". "Instalada no centro da maior cidade da América Latina", a “Floresta de infinitos” "é um projeto político em defesa da vida e da preservação da natureza, que propõe uma ruptura radical com a ignorância e o extermínio".

Para iniciar nossa imersão, entremos literalmente nesta floresta. "Agô! Pede-se licença para entrar na mata sagrada", nos lembra Brito.

A floresta está em uma das salas construídas para esta Bienal e possui, no total, 240 metros quadrados. Toda instalação é formada por muitos e muitos bambus beges instalados verticalmente, apoiados no chão, um ao lado do outro. Eles possuem diâmetros variados, chegando a no máximo 20 centímetros, e aproximadamente quatro metros de altura. Entre esta floresta de bambus há um caminho sinuoso, coberto de serragem marrom, por onde seguimos nossa trilha. Ao longo desse caminho, em meio à floresta de bambus, há caixas de som e telas de 2,5 metros por 1,4 metro, com tecidos de tule preto ou transparentes, com projeções de imagens.

Descrita pelos artistas como "nosso sonho poético", a “Floresta de infinitos” é “povoada de vidas materiais, inanimadas ou que se tornaram ancestrais", como descreve Brito. A instalação-floresta nasce como um momento de invocação e conexão com forças e entidades africanas (no Brasil), afro-brasileiras e indígenas, especialmente Oxóssi/Mutalambô/Otolu; Ossayin/Katendê/Agué; e os Caboclos. Essas entidades se capilarizam em toda a instalação, não exatamente numa representação visual particular e sim na própria acepção da floresta como um todo.

Junto dessas entidades estão o que os artistas denominam de "aparições". Elas são figurações humanas e não humanas, em vídeo ou foto animada, que aparecem nas telas de projeção dispostas em locais específicos da instalação. Essas telas são ativadas conforme caminhamos pela trilha e passamos por elas, "lembrando-nos que as novas tecnologias não são distantes das várias vivências negras e indígenas nas florestas, na vida e na morte."

Num primeiro plano estão aparições humanas, isto é, pessoas que não estão mais biologicamente vivas, mas que ativam as ligações com as entidades convocadas e/ou que lutaram pela salvaguarda de diversas manifestações da natureza. Como propõem Heráclito e Santana, essas personagens humanas "tornaram-se guardiãs de uma ideia profunda de floresta, natureza e encantamento" que esta obra evoca. Dentre elas estão, por exemplo, Mãe Stela de Oxóssi, Joãozinho da Goméia, Mãe Edna, Mãe Mirinha do Portão, Dom Phillips, Bruno Pereira, Chico Mendes e o Índio do Buraco.

Noutro plano estão as aparições chamadas de "espíritos biomórficos", isto é, entidades extintas ou violentadas pela ação humana, como, por exemplo, o rio Doce, a perereca-verde-da-fímbria, o pássaro peito-vermelho-grande e a gameleira branca. Como nos contam Heráclito e Santana, "elas [também] tornaram-se guardiãs, inclusive das florestas que virão, das suas possibilidades infinitas, a despeito da sua finitude".

Numa terceira zona de aparições está a única entidade biologicamente viva: uma árvore de pau-brasil de mais de 600 anos, a mais antiga já identificada no país, na região de Itamaraju, no sul da Bahia.

Todas estas aparições são ancestrais e nos convocam, hoje, a repensarmos nossas ações com vistas a equilibrarmos nossas existências com o que solicita a natureza.

Por fim, uma última dimensão dessa floresta-instalação são os sons e outros "encantamentos sonoro-imagéticos", como descrito pelos artistas. As diversas camadas e texturas sonoras trazem a possibilidade de experimentarmos uma imersão tridimensional. Entre melodias criadas e sons captados em algumas viagens, talvez possamos sentir o "bafo" da floresta em diferentes momentos do dia, sons intermitentes de seres vivos, de ventos, de árvores, das chuvas. O que mais você escuta e sente?

"Agô, [agora] é hora de deixar a floresta", como diz Brito. "Deixemos a mata voltar a seu silêncio misterioso, com seus encantados, rios e formas de vida infinitas. [...]. A respeito da visita humana, perguntam-se: será que aprenderão que toda vida é sagrada?"

Aurora Cursino

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Chegamos ao espaço dedicado à artista Aurora Cursino dos Santos. Ela nasceu em 1896, em São José dos Campos, e faleceu em 1959, em Franco da Rocha, São Paulo.

Desde a juventude, Cursino se interessou por música, literatura e artes plásticas. Fugindo de um casamento forçado e indesejado, que durou apenas um dia, exerceu diversos ofícios, dentre eles os de prostituta e empregada doméstica. Viveu na cidade do Rio de Janeiro e provavelmente esteve em alguns países da Europa, como Portugal. Em São Paulo, ela teve sua trajetória marcada pela internação em hospitais psiquiátricos, especialmente o de Juquery, em Franco da Rocha. Ali recebeu os diagnósticos de “personalidade psicopática amoral” e “esquizofrenia parafrênica”. Ao mesmo tempo, ela participou de oficinas de pintura e foi aluna da Escola Livre de Artes Plásticas. Não à toa, grande parte das pinturas de Cursino foram feitas sobre papel-cartão, material que havia no Hospital do Juquery.

A obra de Aurora tem um caráter autorreferenciado. Muitas de suas imagens retratam, em forma de denúncia, aspectos que perpassam sua própria biografia, como a objetificação das mulheres, abusos e a violência das instituições psiquiátricas da época. Nas telas, é comum que elementos pictóricos delineados por traçados espessos e livres sejam combinados com escritos, estimulando-nos a refletir sobre as relações entre as artes visuais e a prosa.

Esta Bienal conta com uma série de 21 peças com 31 obras de Cursino, pois algumas são frente e verso. Conheceremos agora uma delas, Sem título e sem data, mas que podemos referenciar como "A Brazileira". Ela é feita com tinta óleo sobre papel, e possui frente e verso. Suas dimensões são 50 centímetros de altura por 34,5 centímetros de largura.

Na frente, Cursino retrata uma mulher numa praça. Tudo é feito em tonalidades escuras, indicando que é noite: amarelo, laranja, cinza escuro, verde. Nos traçados, predomina o preto. A mulher está de vestido azul escuro com mangas vermelhas e um chapéu na cabeça. Suas mãos estão erguidas, tocando o chapéu. A mulher olha em direção a um monumento, no centro da pintura. Ele é pequeno em relação ao tamanho da mulher, o que, numa noção de perspectiva, significa que o monumento está ao fundo. A figura no monumento trata-se de um homem que se equilibra sobre um retângulo. O homem leva a mão esquerda ao alto. Ao redor de toda a praça estão postes de luz acesos, algumas árvores e casas coloridas, com portas e janelas. Na fachada de uma das casas está escrito: "A Brazileira".

Essa pintura provavelmente representa o Largo de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, onde a loja de departamentos A Brazileira era localizada. A estátua no centro da praça é do fidalgo José Bonifácio, "Patriarca da Independência". A mulher que aparece na tela refere-se ao ofício de profissional do sexo. Enquanto as famílias que consomem os produtos da loja A Brazileira dormem, ela ocupa o espaço noturno, e o monumento lhe serve de companhia.

No verso da obra há dois elementos pictóricos predominantes: imagens coloridas de pessoas e muitas palavras escritas em preto e com erros de ortografia, tudo sobre um fundo marrom. Um grupo de quatro pessoas, todas bem juntinhas, olham de soslaio para uma quinta pessoa, que está mais ao longe, sentada a uma mesa. No grupo, duas das pessoas vestem uma roupa branca, possivelmente um avental médico. As outras pessoas são mulheres. Elas usam elegantes vestidos e chapéus nas cabeças. Uma delas é loira e seu vestido é preto. A outra é morena e seu vestido é azul escuro. Os rostos delas e dos médicos são pintados com cores vibrantes de amarelo, laranja, vermelho e rosa. A pessoa mais ao longe veste uma roupa negra, com uma gravata borboleta no pescoço. A gola da roupa se estende sobre a mesa, dando a impressão de que a pessoa está acorrentada à ela. Suas bochechas são muito vermelhas, e a expressão é séria.

Ocupando todo o fundo da pintura estão as seguintes palavras:

"Política estadual e nacional

Mendonça se esplique

Ibrahin nobre diga

Vida de Aurora Cursino

[ilegível] Guatambu

[Ilegível]

Fracisca Zaes etc. roubou em Portugal com meu nome muitas vezes e, ainda levou eu dormindo

Electri meio tonta e encobrir ella

E a prima e Susana Descolzi

Pois eu Aurora sou a caipirinha

Maça internacional e universal catholica e ellas

Com isso ussam meu

nome dirigidas por

Guatambu e Dr. João Sampaio.

Tem cumplices nos portos e Dr. Ibrahim

Se esplique direito

Por ter sido eu presa

Uma vez sou

Honesta"

Como diz Tatiana Nascimento para o catálogo desta Bienal, Cursino nos traz "uma dor de muitos nomes: machismo, misoginia, patriarcado, opressão, violação, desrespeito, desumanização… [...]. Mas parece que, além de tantas facadas, os tantos olhos que pintou buscam vestígio desse mundo-sonho – em que mulheres, qualquer profissão que tenham (ou não), independentemente do quanto tentem os muros das casas de patroa, das celas manicomiais estrangular, sufocar, silenciar… um mundo em que qualquer mulher, por mais indigna que seja considerada, ‘psicopática amoral’, possa prever-se futuro feliz".

Sammy Baloji

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Sammy Baloji nasceu em 1978 na cidade de Lubumbashi, República Democrática do Congo. Atualmente, mora e trabalha entre Lubumbashi e Bruxelas, capital da Bélgica. Os deslocamentos entre os dois países são um bom ponto de partida para adentrarmos seu universo artístico. "Desde 2005, Baloji vem explorando a memória e a história da República Democrática do Congo. Seu trabalho é uma pesquisa contínua sobre o patrimônio cultural, arquitetônico e industrial da região de Katanga, bem como um questionamento do impacto da colonização belga."

Para esta Bienal, Baloji apresenta uma instalação chamada "A floresta art nouveau de Hobé e suas linhas de cor”, de 2021; um conjunto de três esculturas em bronze intitulado "Copper Negative of Luxury Cloth, Kongo People, Democratic Republic of the Congo, Republic of the Congo or Angola, Seventeen-Eighteen Century", de 2020; e um vídeo, cujo título é "Tales of the Copper Cross Garden, Episode 1", de 2017.

Nesta faixa conheceremos mais a fundo a instalação "A floresta art nouveau de Hobé e suas linhas de cor". Como diz Marco Baravalle para o catálogo desta Bienal, "Há 130 anos era concluída a obra do Hotel Tassel em Bruxelas, na Bélgica. Assim nascia a art nouveau, estilo que celebrava a modernidade e sua classe dirigente, a burguesia industrial, que acumulara enorme riqueza ao entrelaçar seu destino com o das colônias. Padrões similares, na realidade, foram integrados ao design do Museu Real da África Central, em Tervuren, na Bélgica, para não mencionar a arquitetura e os objetos geralmente feitos com materiais da colônia congolesa: cobre, marfim e madeira. Baloji enfatiza essa conexão entre o estilo floral da art nouveau e a expropriação colonial. Além disso, as cores escolhidas pelo artista foram as mesmas que o escritor e historiador W.E.B. Dubois utilizou para os diagramas mostrados em Exhibit of American Negroes [Exposição de negros americanos] durante a Exposição Universal de 1900, em Paris. Essa escolha, de acordo com Baloji, alude à intenção de 'confundir a leitura etnográfica que se poderia ter dessas obras ao enfatizar o aspecto moderno dessas práticas antigas'. O arquivo colonial é explorado para romper o monopólio ocidental da modernidade".

A instalação é uma composição de quatro painéis de madeira com oito telas feitas com tinta acrílica. Cada um dos painéis tem um tamanho e um formato diferentes. Eles são feitos em madeira clara e possuem delicados adornos entalhados na madeira, em estilo art nouveau. Cada um deles possui uma espécie de recorte vazado, onde uma das telas é posicionada. É como se os painéis fossem uma moldura para as telas, sendo um pouco mais salientes do que elas. Eles parecem interagir com as telas através das formas esculpidas na madeira que os compõem, às vezes sobrepondo-se sobre as telas. Elas, por sua vez, têm padrões inspirados na tradição têxtil congolesa.

A primeira composição é feita por um dos painéis, com relevos que simulam uma fachada art nouveau, e três telas. A primeira delas está no centro do painel, num formato horizontal. Ela é feita com linhas pretas sobre um fundo branco, formando diferentes padrões. Há um jogo de perspectiva nestes padrões. Predominam quadrados, um dentro do outro, como se saíssem do fundo e chegassem até nós.

À direita e à esquerda desta tela estão as outras duas. Elas têm o formato de um retângulo, mas sem ângulos retos, e estão posicionadas na vertical. Ambas são feitas com linhas espessas na horizontal, pintadas em tons de amarelo ou vinho, sobre um fundo branco. Sobre elas há elementos gráficos, também feitos pelo traçado das linhas espessas, nas cores verde e azul; amarelo, sobre as linhas na cor vinho; e vinho sobre as linhas amarelas. Esses elementos têm o formato de linhas transversais e alguns se assemelham a flechas que se direcionam para baixo.

A segunda composição é feita por duas telas, uma logo abaixo da outra, sobre outro painel. Ambas também são feitas com linhas retas e espessas coloridas de azul escuro, preto, branco, vermelho e amarelo. As diferentes direções das linhas desenham padrões. Destaca-se aquele que é formado por um triângulo, unido com um retângulo, sobre o fundo de linhas retas. Esta composição de triângulo com retângulo se direciona para baixo, no caso da primeira tela, e para cima, no caso da segunda tela.

Na terceira, o painel de madeira compõe com uma única grande tela. Arabescos entalhados na madeira do painel invadem a tela. Ela, por sua vez, é repleta de linhas verticais e espessas nas cores preto e branco, intercaladas. Sobre essas linhas há alguns elementos gráficos no formato de setas ou linhas transversais, todas elas preenchidas de listras em amarelo e preto.

Na última, dois painéis, cada um com uma tela colorida, formam um díptico. Os painéis possuem entalhes de arabescos na parte superior. Na tela à direita, linhas espessas nas cores preto, branco, vermelho e cinza se sobrepõem, em diferentes direções, formando padrões de losangos, linhas transversais e outros mais subjetivos. Na tela à esquerda, as linhas espessas seguem o mesmo padrão e são coloridas de verde, preto e cinza. Elas criam formas semelhantes às outras telas, mas nunca são exatamente iguais – algo sempre escapa, criando espaços de inovação.

Stella do Patrocínio

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Olá, eu sou Dandara Queiroz, arquiteta, atriz e modelo. Sou descendente indígena por parte de pai e mãe, criada no estado de Mato Grosso do Sul. Iniciei minha carreira artística aos 16 anos e atualmente interpreto a Josy, umas das personagens principais da minissérie antológica Histórias (Im)possíveis, de que faz parte o episódio Falas da Terra, pensado para o Dia dos Povos Indígenas.

Eu vou te acompanhar nas próximas quatro faixas deste audioguia.

Chegamos ao “Falatório” de Stella do Patrocínio, artista e poeta nascida em 1941, no Rio de Janeiro. Ela faleceu em 1992 na Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica onde foi involuntariamente internada aos 21 anos.

Stella era uma mulher negra, "tinha família, fazia planos, circulava livremente pelas ruas e inclusive frequentava espaços religiosos", como diz a pesquisadora Anna Carolina Zacharias. A internação compulsória aconteceu num dia em que ela caminhava pela rua com Luiz, que teria se afastado brevemente para buscar comida. Neste ínterim, a polícia civil a capturou. Com o diagnóstico de “esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”, Stella foi levada a algumas instituições, onde recebeu os primeiros eletrochoques, até chegar à Colônia Juliano Moreira.

Esta Bienal conta com uma instalação sonora de Stella do Patrocínio chamada "Falatório". São quatro áudios, com duração de cerca de 90 minutos no total. Os registros sonoros foram gravados entre 1986 e 1988 pela artista plástica Carla Guagliardi, então estagiária das oficinas de arte da Colônia Juliano Moreira. Depois, foram consolidados pela Colônia Juliano Moreira em acordo com o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial brasileira.

A sala onde está a obra é redonda e suas paredes são pintadas de preto. A proposta deste espaço é que foquemos na escuta dos áudios.

Podemos perceber que as reflexões de Stella do Patrocínio, repletas de densidade poética, denunciam as intersecções entre múltiplas violências institucionalizadas. Especialmente, o suposto adoecimento psíquico aparece atrelado à condição racial e de gênero que Stella experienciava, reativando a violência da escravidão, do racismo e do colonialismo. Stella conta que, na instituição, "um presídio de mulheres cumprindo a prisão perpétua", ela passa fome, sofre. Incitada a falar pela entrevistadora, ela diz: "Eu já falei o que podia, não tenho mais voz. Eu já até falei que eu não ando pela cabeça, pela inteligência. Estou com a cabeça ruim, sem poder pensar." Paradoxalmente, é justamente essa inteligência, expressa pela oralidade e pela experiência sonora negra, que se torna uma estratégia de fuga e sobrevivência de Stella do Patrocínio.

Niño de Elche

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Chegamos ao “Auto sacramental invisível: Uma representação sonora baseada em Val del Omar”. Esta obra de Niño de Elche é uma instalação imersiva de luz e som. Como o próprio título menciona, trata-se de um auto sacramental, ou seja, de uma obra teatral de cunho alegórico da Idade Média, que tem como base questões morais e teológicas. E quem seria Val del Omar? Era um cineasta espanhol que tinha um conceito integrador de cinema, onde o sujeito poderia se mover para além dos limites da tela.

O “Auto sacramental invisível” é um espaço envolto por uma cortina decorativa preta, com ornamentos cinzas. O piso é de madeira, como os dos antigos palcos de teatro. A sala é retangular, com os cantos arredondados e há apenas um acesso para entrada do público. Em um dos cantos há duas fileiras com quatro poltronas cada, com se fossem uma pequena plateia diante do espaço vazio.

Sobre esse espaço vazio, suspenso a quase 4 metros do chão, está uma instalação formada a partir de uma estrutura de barras de metal interligadas. Dessa estrutura pendem 15 lâmpadas brancas arredondadas de diferentes alturas. Na parte inferior de cada uma das lâmpadas há um alto falante acoplado. Esses alto falantes executam em looping 17 faixas sonoras diferentes. A cada uma das faixas de som, a composição da iluminação da sala se altera.

Segundo José Antonio Sánchez, no texto redigido para o catálogo da Bienal, “a coletividade teatral desaparece do palco, mas se manifesta na multidão de vozes que compõem o palimpsesto do roteiro e na multidão de olhos e mãos que intervieram ao longo dos anos para tornar essa instalação possível. O teatral também é realizado no convite ao espectador para participar dessa outra coreografia não espetacular: aquela composta com os movimentos na escuta ativa de um som espaçado, sempre fugaz, como as lâmpadas e as imagens que contribuem para a invisibilidade.”

Trinh T. Minh-Há

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Como retratar o outro, o desconhecido, sem distorcer sua imagem?

Em 1982, a cineasta vietnamita Trinh T. Minh-ha, que reside nos Estados Unidos, lançou seu filme intitulado "Reassemblage – from the firelight to the screen". Este filme é resultado de sua pesquisa de campo realizada nas áreas rurais do Senegal entre 1977 e 1981.

A obra tem um caráter autorreflexivo e leva em consideração tanto a forma como representamos o passado histórico quanto aquilo que está sendo retratado. Em vez de observarmos o mundo através das lentes documentais, os documentários autorreflexivos nos convidam a enxergar o documentário pelo que ele é: uma construção ou interpretação.

Dessa maneira, o trabalho propõe uma dupla ruptura em relação ao estilo documental etnográfico convencional. Em primeiro lugar, a cineasta constantemente questiona sua própria posição por meio de abordagens autorreflexivas. Em segundo lugar, reconhece-se a impossibilidade de se estabelecer um discurso imparcial na relação com outras culturas e povos.

"Reassemblage" oferece críticas contundentes às estratégias cinematográficas comuns nas convenções do cinema documental clássico, especialmente no âmbito etnográfico. A diretora considera essas estratégias como herdeiras de uma abordagem colonialista, sexista, enviesada e etnocêntrica.

O filme tem duração de 40 minutos e é composto por imagens e sons cotidianos capturados em aldeias rurais do Senegal, com pouca estrutura. As casas são de palha e há criação de alguns animais. Os homens e, principalmente, as mulheres e crianças são mostrados em suas atividades, como a preparação de artefatos de palha trançada, a moenda de grãos com pilões manuais, o transporte de alimentos em grandes cestos sobre a cabeça, o plantio e a forja rústica de ferramentas de aço. Sobre essas imagens surge o som da voz da própria diretora, entrecortada em alguns momentos pelas falas das pessoas que ela retrata.

“Reassemblage” apresenta uma formulação de fala próxima, diferenciando-se do falar sobre. Ao filmar o cotidiano de uma zona rural no Senegal, a voz em off da diretora se volta à própria prática cinematográfica e busca desmantelar a exotização, comum às epistemologias coloniais. Falar próximo é reconhecer a lacuna. Ao renunciar à explicação da Outra/do Outro, assume-se que não há uma solução a ser apontada. Como diz Trinh T. Minh-ha “estou olhando em círculo, em um círculo de olhares”.

Mahku

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Estamos diante das obras do grupo MAHKU, acrônimo de Movimento dos Artistas Huni Kuin, um coletivo de artistas da Terra Indígena Kaxinawá do rio Jordão. O grupo é formado por Ibã Huni Kuin, Bane Huni Kuin, Maná Huni Kuin, Acelino Tuin e Kássia Borges.

A produção do coletivo foi inspirada pelas investigações iniciadas por Isaías Sales, ou Ibã Huni Kuin, Txaná dos cantos huni meka. Em 2009, seus filhos – Bane Acelino e Maná – começaram a transformar esses cantos em imagens, com o intuito de decorá-los e compreendê-los. Esse processo foi, então, compartilhado, culminando na criação do coletivo artístico em 2012. Hoje, o coletivo é um importante agente no cenário da arte contemporânea brasileira.

Para esta Bienal, MAHKU apresenta uma série de dezoito pinturas inéditas. Cada uma delas tem dois metros e vinte centímetros de largura por dois metros e sessenta centímetros de altura. Elas estão dispostas uma ao lado da outra, num formato de semicírculo, cobrindo o fechamento da rampa no andar roxo e continuando-se mutuamente.

A iconografia Huni Kuin apresenta traduções de cantos de cura e cenas concebidas a partir de processo de miração, experiências de visões estimuladas pela ingestão de ayahuasca durante os rituais de nixi pae. Também apresentam traduções de narrativas míticas e histórias ancestrais, descritas nos cantos rituais.

Uma das características marcantes das pinturas Huni Kuin é a presença de seres humanos e não humanos, ou de humanos e outros entes da natureza, enredados de maneira não hierárquica. Isto nos sugere que as relações entre uns e outros não são de separação, mas sim de continuidades e co-constituições.

Outra característica são as múltiplas cores. As pinturas Huni Kuin costumam ter pequenas áreas de coloração intensa, com predominância do amarelo, vermelho, azul, preto, marrom e rosa. Essas áreas são integradas aos outros elementos por meio de tramas gráficas muito complexas, que refletem e fazem referência às pinturas corporais.

Outro aspecto marcante são as molduras preenchidas por grafismos demarcados por linhas pretas com áreas coloridas. Elas não são externas, e sim parte das pinturas. Mas, ao invés de limitar ou conter os demais elementos, a moldura parece propor a demarcação de um território autônomo, onde as histórias míticas, tradicionais e das mirações Huni Kuin podem fruir livremente.

Diferentemente das codificações ocidentais, onde prevalecem a mimese, a perspectiva, as regras de proporção e das técnicas canônicas, na pintura do MAHKU os compromisso são outros: a manutenção de uma zona de indiscernibilidade entre sonho e mito; a não hierarquização das relações entre entes viventes; a apresentação de elementos imagéticos que se distanciam da ilustração, abstração ou figuração para nos guiar por veredas de experiências interiores – ou de uma “arte espiritual”, como diz Ibã.

Conheçamos com mais detalhes uma das pinturas, executada por Kássia Borges, integrante do MAHKU. Ela representa o canto de cura Huni Kuin do Tabaco Verde. Atuando como purificador para os povos indígenas, o tabaco e outras ervas são administrados como medicinas sagradas. Ao lado dos outros 17 painéis que também representam cantos de cura, esta pintura multicolorida apresenta três mulheres indígenas trabalhando em vasos de cerâmica, ao redor de sapos, serpentes e árvores. Os tons de verde são predominantes. A artista afirma que, igualmente ao canto, o trabalho em cerâmica também é uma espécie de cura, pois equilibra os quatro elementos em um processo de manipulação e liberação de energia.

Para esta Bienal, os artistas criaram as imagens de acordo com as temporalidades e vicissitudes de seus próprios processos investigativos. Esse método é importante para entendermos as obras do coletivo. Como diz Renato Menezes no catálogo da mostra, "o que encontramos é o resultado de uma imagem-processo, realizada por muitas mãos, a partir do diálogo e do aprendizado entre os envolvidos, cujo objetivo final é a cura, tanto de quem a realizou quanto do observador que a acessa, transformando-a em experiência espiritual."

Quilombo Cafundó

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Oi, sou Luanda Vieira, jornalista especializada em moda, beleza e bem-estar. Passei pelas revistas femininas da Edições Globo Condé Nast, Glamour e Vogue, onde ocupei os cargos de editora de moda e de beleza, respectivamente. Fui a primeira e única brasileira a ingressar no Comitê Global de Diversidade e Inclusão, comandado por Anna Wintour. Hoje também atuo como influenciadora digital e comando o podcast O Corre Delas, sobre carreira, na Obvious.

Estarei aqui com você nas próximas quatro faixas deste audioguia.

Chegamos ao Quilombo Cafundó. A Comunidade Quilombola do Cafundó está localizada na área rural de Salto de Pirapora, a doze quilômetros do centro de Sorocaba, no estado de São Paulo. Oficialmente, o Quilombo existe desde pelo menos 1888, quando o casal Joaquim Congo e Ricarda Congo receberam a alforria e herdaram as terras da pessoa que era, então, o senhor deles.

Na década de 1970, um homem chamado Seu Otávio Caetano teve grande importância na luta deste e de outros quilombos vizinhos, que eram vítimas de uma onda de violência e extinção. Particularmente, os esforços de seu Otávio de falar sobre o Quilombo e da língua cupópia, que combina a estrutura do português com palavras de origem africana, ganharam notoriedade. Isso culminou em visitas de antropólogos e linguistas à comunidade, o que garantiu alguma proteção aos moradores do Cafundó.

Em 20 de novembro de 2009, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou o reconhecimento do Quilombo Cafundó como área de interesse social. Atualmente, o quilombo ainda é habitado pelos descendentes daqueles que o iniciaram.

Esta Bienal conta com arquivos, fotos e documentos que fazem parte da história do Cafundó. São mais de 120 exemplares, de dimensões variadas.

Um primeiro conjunto são fotos, coloridas e em preto e branco, de lugares e pessoas do Quilombo.

Outros são esboços, datilografados ou desenhados sobre uma folha de papel branca, de mapas de localização, quadro territorial, plantas e projetos arquitetônicos, como os do território do próprio Quilombo, da Capela Cafundó ou da Casa de Otávio Caetano e dona Maria.

Também há uma série de mapas genealógicos. Há um intitulado "Os ascendentes de Josefa Maria de Camargo". Outro, por exemplo, é o mapa genealógico de "Caxambú e Cafundó".

Noutra categoria estão anotações sobre as línguas faladas do quilombo. "Lista lexical de Otávio Caetano; "Expressões com 'quendar'"; "Expressões da cupópia"; "Comparação de expressões entre 'Minas' e Cafundó”; ou, ainda, "Dúvidas: pronúncia e sentido".

Há também algumas notícias de jornal, todas publicadas no ano de 1978. Os títulos são sugestivos da histórica luta do Quilombo e da percepção pública sobre ela, ainda na década de setenta. Escutemos alguns deles: "Os negros do Cafundó e sua estranha maneira de falar", com subtítulo "Nas recordações, o tempo da escravidão", publicado pelo Cruzeiro do Sul, jornal de Sorocaba; "Charada no Cafundó", publicado pela Veja São Paulo, com fotos coloridas de seu Otávio Caetano, um homem idoso e negro, com cabelos curtos; "O negro está livre?", feito pelo jornal Folhetim, de São Paulo; ou, ainda, "Morte no Cafundó: negros defendem terras a foice", também do jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba.

Kapwani Kiwanga

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Chegamos agora à instalação criada por, artista franco-canadense que reside atualmente em Paris. Sua obra explora amplamente as desigualdades de poder. Abigail Campos Leal diz, em seu texto para o catálogo da mostra, que "O trabalho de nos afeta através de sentimentos de confusão, mas menos como método e mais como um caminho. Sua arte confunde os fundamentos rígidos do mundo moderno-colonial, sobretudo sua perversa lógica binária, como a de verdade e ficção".

Para a 35ª Bienal, apresenta a instalação chamada "Pink-Blue", de 2017.

A instalação é um corredor com paredes, teto e piso, por onde podemos caminhar. Ele não possui janelas. As únicas aberturas são a entrada e, ao final, uma pequena porta aberta, por onde podemos sair. As dimensões do corredor são de 3 metros de altura entre o chão e o teto, 3 metros de largura entre as duas paredes, e 16 metros de comprimento, da entrada até a saída. No teto há duas fileiras de tubos de luz fluorescente, cada uma delas dispostas na diagonal em relação às paredes.

Na primeira metade do corredor, o teto, as paredes e o chão são pintados de rosa. Na segunda metade, são pintados de branco. Na porção rosa, as luzes neon do teto são brancas. Elas reforçam as tonalidades da cor rosa. Na porção branca, entretanto, as luzes são azuis, de maneira que o efeito visual é azul ao invés de branco.

O visitante deve entrar primeiro pela parte rosa e sair pela seção azul, caminhando em direção à pequena porta e sentindo as nuances proporcionadas pelo jogo de cores. A diferença de cores confere uma divisão a este espaço que é fechado e contínuo. As luzes neon dispostas na diagonal, por sua vez, desorientam nossa sensação de um caminhar retilíneo e linear.

Como diz Campos Leal, "Pink-Blue" “é concebida a partir da pesquisa de sobre instituições totais – caso das instituições psiquiátricas e dos presídios – e o impacto da arquitetura e design punitivista sobre nossos corpos, além da vigilância constante. A instalação traz à tona mecanismos que, na surdina, moldam, regulam e preveem as formas de sociabilidade. Neste caso, a cor rosa, especificamente a Baker Miller Pink, acalmaria instintos agressivos, enquanto o azul neon, dificultaria a localização das veias, inibindo usuários de drogas injetáveis.”

Castiel Vitorino Brasileiro

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Quase no final de nosso percurso pela Bienal nos deparamos com a instalação de Castiel Vitorino Brasileiro, uma artista que constrói sua obra, como ela própria afirma, “não a partir de identidades modernas, mas a partir de sua própria condição híbrida.”

A partir desse hibridismo, a artista recusa os rótulos e as categorizações que tentam circunscrever sua identidade. Mulher trans negra, ela encara sua obra como um aviso de que “podemos viver outra história que não essa racial e de gênero”.

A instalação de Castiel Vitorino Brasileiro construída para a 35ª Bienal chama-se “CENA DA BIOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO: A ALMA DENTRO DESTAS MATÉRIAS”. A respeito dessa obra, a artista nos conta que “inserir as almas nos estudos modernos sobre a vida terráquea é tão perigoso quanto transformar a biologia numa disciplina espiritual. Em ambos os casos, nos deparamos com a matriz geradora de vida: a incapacidade de celebrar a transformação da matéria e ignorar a memória do que decidiu-se nomear de objeto”.

Trata-se de uma imensa instalação. No chão coberto por uma terra marrom escura, está um barco azul com o casco virado para cima e parcialmente enterrado no chão. Sobre o casco do barco há dezenas de copos e taças. Logo atrás, 12 compridos troncos de eucalipto, empilhados ordenadamente, formam uma base triangular. Depois dos troncos, uma coleção de 36 alguidares, aqueles típicos recipientes de barro, de diferentes tamanhos e formatos, cheios de carvão. Eles estão organizados de forma equidistante em seis linhas e seis colunas. Ao fundo, as ruínas do que Castiel chama de museu. Este intrigante museu é feito de tijolos de barro, vermelhos. Não há teto, somente suas paredes, que remetem a ruínas. Em uma delas lê-se a inscrição: “Museu dos objetos com alma roubados pela polícia brasileira”. As paredes deste museu abrigam cinco pinturas realizadas pela artista. A instalação, vista de cima, se mostra retangular, tendo da direita para esquerda, o barco, os troncos, os alguidares e as ruínas.

Segundo a artista, “não existe objeto, quando consideramos que em tudo há vida. No barco, nas árvores de eucalipto responsáveis por criminosas monoculturas, nas terras escuras e avermelhadas constituídas por nutrientes gerados por milhares de anos. Nas pinturas que declamam pensamentos e emoções sobre nossas origens. Nos alimentos que saciam a fome de anatomias que desconhecem a cisão entre arte, ciência e espírito. Ori. Numa ruína dum museu que parece ser fictício, mas não é.”

Daniel Lie

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Chegamos ao final da nossa visita à 35ª Bienal com a obra OUTRES, de Daniel Lie, que é artista não binárie de origem indonésia e pernambucana. Lie nasceu em São Paulo e atualmente vive um processo nômade. Apesar de adotar a chamada linguagem neutra no título da instalação, em oposição à binariedade masculino/feminino dos sistemas linguísticos vigentes, não é esta a centralidade de significações que emanam da sua obra. O que Lie coloca em cheque são outros simplismos binários que categorizam o mundo à nossa volta, principalmente aqueles que não conseguimos ver e que suas obras vivas colocam em evidência diante de nossos sentidos.

Como diz Thiago de Paula Souza em texto para o catálogo da mostra: “Lie ampliou suas noções de temporalidade e tem se empenhado em encontrar formas de colaboração que quebrem a noção hierárquica que posiciona a espécie humana no topo da escala evolutiva. Desde então, elu desenvolve ‘instalações-entidades’: grandes esculturas de materiais orgânicos, resultado do processo de degradação/transformação dos elementos que lhe dão forma.”

A instalação criada por Daniel Lie está entrelaçada nas colunas do edifício da Bienal. Ela é composta por tecidos brancos tingidos com cúrcuma. Esses tecidos se envolvem em seis colunas do edifício, três de cada lado, formando uma área retangular. Entre os tecidos estão estruturas terrosas marrons, que partem do alto de cada uma das colunas e descem ao chão, no centro deste quadrilátero. Junto dessas estruturas há volumosos arranjos com folhas, flores amarelas e brancas e vasos de terracota suspensos por cordas presas no teto em diferentes alturas e disposições.

A instalação opera com materiais inerentemente efêmeros e transitórios, como matéria em decomposição, plantas em crescimento e outros processos orgânicos operados por “outres-além-de-humanes”, como bactérias, fungos, plantas, animais, minerais, espíritos e ancestrais

A depender do momento em que você visite a exposição, a obra de Lie pode ter um odor diferente. Esses materiais evoluirão e se transmutarão ao longo da mostra à medida que apodrecerem, brotarem e mudarem de forma e tonalidade de maneiras imprevisíveis. Ao ser exposta à luz solar, a cúrcuma perde sua tonalidade, de forma que, com a passagem do tempo e recebimento da luz solar que vem das grandes janelas do pavilhão, o pigmento pode esvanecer completamente dos tecidos.

Ficha técnica da exposição

A Fundação Bienal de São Paulo divulga a primeira lista parcial de artistas da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, além da identidade visual, cartaz, site, projeto educativo e conselho curatorial desta edição.

Intitulada coreografias do impossível e trazendo práticas artísticas de diferentes partes do mundo, a 35ª Bienal de São Paulo “deseja construir espaços e tempos de percepção que desafiam a rigidez da linearidade do tempo ocidental. O que vemos nesse horizonte coreográfico são estratégias e políticas do movimento que essas práticas vêm criando para imaginar mundos que confrontam as ideias de liberdade, justiça e igualdade como realizações impossíveis”, afirmam Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, que formam o coletivo curatorial da mostra.

Para os curadores, “o impossível refere-se às realidades políticas, jurídicas, econômicas e sociais nas quais essas práticas artísticas e sociais estão inseridas, mas, também, no modo como tais práticas encontram alternativas para driblar os efeitos desses mesmos contextos. Já o termo coreografia nos ajuda também a refletir como a ideia de mover-se livremente permanece no cerne de uma concepção neoliberal de liberdade. Em consonância com o próprio paradoxo criado pelo título, buscamos não caminhar ao redor de um motivo ou por núcleos temáticos, mas antes abrir espaço para uma dança contínua em que podemos coreografar juntos, mesmo na diferença."


Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel
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