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34ª Bienal de São Paulo - Faz escuro mas eu canto

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São Paulo

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04 de Setembro de 2021 a 05 de Dezembro de 2021

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Início da exposição

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Bienal

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Fundação Bienal de São Paulo

Olá! Eu sou a Marília Gabriela e junto com a Adriana Couto, a Sara Bentes e o André Trigueiro, vou acompanhar você pela 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto.

Um dos pontos trabalhados pela curadoria desta Bienal é que o sentido das obras de arte pode mudar dependendo de seu contexto ou de quem as vê. Então, as leituras de um mesmo objeto podem ser diferentes, mas isso não significa que uma seja melhor ou mais correta que as outras.

Mas antes de começar a falar sobre as obras, quero te contar um pouco do que você vai escutar por aqui.

Como a exposição é muito grande e tem mais de mil obras, seria impossível falar sobre todas elas, então escolhemos 20 peças que compõem a mostra para criar um trajeto que se inicia no térreo e vai até o terceiro pavimento.

Pense nas nossas faixas como pontos-chaves ou paradas estratégicas dentro da sua visita. Você pode ir diretamente de uma obra para outra ou aproveitar os intervalos para se envolver com as demais obras que estão no caminho.

Em cada uma dessas paradas, eu, a Didi, a Sara e o André vamos apresentar as histórias por trás das obras, falar um pouquinho do que as artistas e os artistas quiseram dizer com elas, e vamos descrever essas peças. Isso porque nem todo mundo vê as coisas da mesma forma – aliás, nem todo mundo vê e acessa as coisas da mesma forma – e este é um audioguia inclusivo: a gente quer que essa experiência seja para todo mundo mesmo e, por isso, também está disponível em Língua Brasileira de Sinais (Libras)!

E se, por acaso, você estiver me ouvindo sem estar na exposição, você pode complementar a sua experiência consultando as fotos e vídeos disponíveis no site da 34ª Bienal e no site e aplicativo do Musea.

Vamos lá?

Este audioguia é uma correalização da Fundação Bienal de São Paulo com o Goethe Institut. Contou com a consultoria de acessibilidade da Mais Diferenças; desenho de som e trilha sonora do Fernando Cespedes; e distribuição do Musea.

Museu Nacional

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Museu Nacional

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Oi de novo. Agora que você já ouviu, na faixa anterior, como esta experiência vai acontecer, eu, Marília Gabriela, vou continuar com você na primeira parte do seu percurso pela 34ª Bienal de São Paulo.

Vamos começar falando sobre algumas peças do Museu Nacional, um dos eixos simbólicos desta exposição. Essas peças, juntas, nos levam a pensar sobre as diferentes maneiras pelas quais o passado resiste e se faz presente.

Os museus são uma das maneiras pelas quais a memória de um povo é preservada, e é essa memória que permite que a gente se lembre e reconheça quem somos. Então o que fazer quando parte daquilo que lembra o que somos é consumido pelo fogo? O que fazer quando uma tragédia varre parte de nossa memória?

Foi isso que aconteceu na noite de 2 de setembro de 2018: a sede histórica do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi devastada por um incêndio que destruiu quase a totalidade do acervo histórico e científico da instituição, que abrangia cerca de vinte milhões de itens.

Daquilo que sobreviveu, resgatado pelas mãos sujas de homens e mulheres que lutam para não perdermos a memória, há três itens expostos aqui.

O primeiro é uma rocha que, com o calor do incêndio, se transformou de ametista, com sua coloração violeta, em citrino que tem uma cor amarelada. É uma rocha de formato irregular com cerca de 15 centímetros.

Outro item é o Santa Luzia, o segundo maior meteorito encontrado no Brasil, descoberto em 1921 na cidade de Santa Luzia (atual Luziânia), em Goiás. O meteorito é uma sólida peça de cerca de 1 metro e 30 centímetros com uma coloração e brilho semelhantes ao bronze, pesando quase duas toneladas.

O terceiro item é uma boneca ritxòkò, de cerâmica branca com os cabelos, olhos, boca e vestimentas feitas em tinta preta. Ela está sentada em um banquinho, também de cerâmica branca, feito em uma peça separada, com as mãos sobre as pernas e olha para frente. Tem 18 centímetros de altura, 8 de largura e 5 de profundidade.

Ao contrário das outras duas peças, essa boneca não poderia ter sobrevivido ao incêndio. Na verdade, ela substitui outra boneca, essa sim perdida para as chamas, e foi doada ao Museu Nacional por Kaimoti Kamayurá, da aldeia Karajá de Hawaló, na Ilha do Bananal, no Tocantins, para ajudar na reconstituição da coleção. A boneca pôde ser substituída, pois seu significado transcende sua presença e até mesmo sua existência física. Mas, no caso do acervo perdido, foi uma exceção.

Reunidos, esses 3 objetos nos mostram como resistir pode tomar diversas formas. Para o meteorito, que atravessou o espaço e queimou na nossa atmosfera, as temperaturas que atingiram o Museu Nacional não foram nada: ele já havia sobrevivido a condições mais extremas. Para o citrino, então ametista, uma transformação se deu, e embora sua aparência tenha mudado, essencialmente, a pedra continua a mesma. A boneca ritxòkò que fazia parte da coleção não sobreviveu, mas o objeto importava muito menos que seu significado, e um novo gesto de generosidade permitiu que ela tenha encontrado seu caminho de volta ao Museu Nacional.

Sebastián Calfuqueo, 2017

Sebastián Calfuqueo Aliste

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Sebastián Calfuqueo Aliste

ALKA DOMO, 2017

Video performance

Coleção: Il Posto.

Foto: Juan Pablo Faus

Cortesia do artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Agora chegamos à videoperformance Alka Domo, de Sebastián Calfuqueo, artista do Chile de origem Mapuche. A obra foi produzida em 2017 e tem duração de 17 minutos.

Calfuqueo é jovem, de pele clara e cabelos lisos e negros. Na maior parte do vídeo, aparece vestindo calça e camiseta preta. Com essas roupas, chega caminhando, sem sapatos, a diferentes lugares: uma praça com esculturas, prédios históricos, um mercado.

Em cada um desses lugares, calça um sapato de salto alto. A cada vez, os sapatos têm cores diferentes e vibrantes que contrastam com as roupas escuras.

E, em cada locação, seus atos se repetem: calça os sapatos, em seguida se inclina e recolhe do chão um tronco de Coihue, uma madeira ancestral do sul do Chile, e o coloca no ombro, suportando seu peso com algum esforço.

O objeto é um tronco oco com quase dois metros de comprimento, e seu processo de confecção é mostrado no início do vídeo.

Enquanto declama um poema, Calfuqueo manipula a goiva, o martelo e uma serra elétrica, abrindo espaço no interior da madeira, deixando-a oca. Em castelhano, "oco" se diz “hueco”. E, no Chile, essa palavra também designa, de forma depreciativa, identidades que escapam à heterossexualidade.

Os lugares escolhidos para a performance simbolizam a história oficial sobre os Mapuche no Chile. Calfuqueo os escolheu para problematizar a complexa interação entre a população indígena e a chilena.

Com elementos que simbolizam tanto sua ascendência indígena quanto sua dissidência dos padrões heteronormativos vigentes, Calfuqueo evidencia o cruzamento e a sobreposição de dominações e repressões a que seu corpo está submetido.

Instiga, assim, uma reflexão sobre o status social, cultural e político do povo e da cultura Mapuche na sociedade chilena contemporânea.

Uýra, 2018

Uýra

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Uýra

Elementar (Rio Negro), 2018

Foto: Ricardo Oliveira

Cortesia do artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos à montagem de algumas fotoperformances de Emerson Pontes, artista-visual nascida na Amazônia brasileira, que também é bióloga e arte-educadora. Emerson é de origem indígena, mas não sabe de qual povo descende, pois foi violentamente apartada de suas origens e raízes, como muitos outros membros de populações originárias do continente americano.

Mas não é Emerson que vemos nas fotos, senão Uýra (Uíra), uma entidade híbrida que se apresenta como “uma árvore que anda”. Ela nasceu em 2016, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, quando o biólogo decidiu expandir sua pesquisa acadêmica e buscar formas de levar o debate sobre a conservação ambiental e os direitos indígenas e LGBTQIA+ às comunidades de Manaus e seus arredores.

Seja em aulas de arte e biologia; seja em suas performances fotográficas, com maquiagem e camuflagem; seja em textos e instalações, o que Uýra faz é falar desde a floresta e com ela.

Os elementos usados por Uýra na sua caracterização para fotos e fotoperformances são sempre provenientes da natureza e podem envolver ramagens, sementes, conchas, folhas e flores. A sua aparência está em constante mutação, assim como a floresta. O processo de transformação de Emerson em Uýra pode demorar até cerca de duas horas.

Parte da série Elementar, que vemos aqui, a fotografia Rio Negro, produzida em 2018, é retangular e vertical, medindo 110 centímetros de altura por 74 centímetros de largura. Mostra em destaque o rosto de Uýra envolto por uma densa folhagem verde de variadas formas. Seus olhos brilham no azul intenso das pupilas, que contrastam com sua pele coberta por uma tintura preta acinzentada. Dos dois lados do rosto, logo abaixo dos olhos, há caules vermelhos de onde saem ramagens brancas que parecem se integrar ao seu rosto como um organismo vivo. A parte central de seus lábios está pintada de branco e no seu pescoço é possível perceber, entre as folhagens verdes, um colar feito de contas e sementes.

Uýra não pertence a nenhum gênero ou espécie, e, em seu não-pertencimento, identifica-se com a vida como um todo. Ela evoca, ao mesmo tempo, seres ancestrais ou futuristas, entre utópicos e apocalípticos, de uma beleza perturbadora. A floresta que engole o corpo e o corpo que se transforma.

Joan Jonas, 1968

Joan Jonas

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Joan Jonas

Wind [Vento], 1968

Still de vídeo

Cortesia da artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Agora vemos o filme Wind – que, em português, quer dizer "vento" – uma obra da artista estadunidense Joan Jonas produzida em película de 16 milímetros, em preto e branco e transferida para o formato digital. É um filme mudo com cinco minutos e 37 segundos de duração, que aqui é exibido em uma tela com quatro metros de largura e três metros e meio de metros de altura.

Realizado na praia de Long Island, no estado de Nova York, nos Estados Unidos, em um dos dias mais frios do ano de 1968, o filme traz Joan Jonas e seis performers que se colocam em diferentes situações diante da câmera operada por Peter Campus. Suas pesadas roupas de frio tremulam contra a violência do vento, que também move um tecido branco, meio transparente, mobilizado por eles.

Com o mar ao fundo e sobre a areia congelada, os dançarinos combinam gestos ora banais ora enigmáticos, que transitam entre coreografia, cerimônia e improvisação. Eles exploram situações de desequilíbrio, apoiando-se uns nos outros à medida que o vento desafia sua resistência e se torna visível por meio de seus corpos, e o simples ato de caminhar contra ou a favor dele muda a qualidade de seus movimentos.

A obra termina com pesadas nuvens se movimentando rapidamente, levadas pela ventania. Além das pesadas correntes de ar que se fizeram visíveis nos corpos dos performers, outro elemento, o frio, também ganhou materialidade na obra, mas por meio dos danos que causou à película, a qual chegou a congelar devido às baixas temperaturas.

Joan Jonas é uma pioneira da videoarte que desenvolveu um estilo único, no cruzamento entre performance, ação e vídeo. Aqui ela explora elementos fundamentais como o ar e a água em uma paisagem grandiosa, colocando os performers em uma relação de pequenez e fragilidade com relação às forças da natureza – as quais, por outro lado, não poderiam ser realmente visíveis sem a presença dos dançarinos.

Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter, 2018

Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict, David Rueter

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Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter

deposição [deposition], 2018

Renderização arquitetônica

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Você já se perguntou se um mesmo objeto mantém seu significado quando exibido em contextos diferentes?

Para a curadoria da 34ª Bienal, a circunstância em que vemos uma obra de arte, ou qualquer outra coisa, influencia as leituras que fazemos dela. A cada novo encontro, diferentes aspectos dessa mesma obra podem ganhar mais ou menos relevância dependendo de tudo aquilo que a cerca e até mesmo do nosso estado de espírito no dia.

A obra Deposição, do brasileiro Daniel de Paula com o duo estadunidense Marissa Lee Benedict e David Rueter, parte de um objeto que foi retirado do seu lugar usual. Trata-se de uma arquibancada montada com cinco partes que se juntam lado a lado, formando uma arena. Essa estrutura tem aproximadamente cinco metros de largura com sete degraus concêntricos. Os degraus partem do centro, vão aumentando sua dimensão na largura e subindo até chegar ao topo. Em volta do sétimo degrau, o último e mais alto, há um gradil de proteção feito com barras de ferro. Em frente ao lado aberto dessa arena temos outra pequena arquibancada, formada desta vez por duas partes de conjuntos de sete degraus, trazendo a sensação de que foi deslocada da estrutura maior. Mais afastada destas duas arquibancadas, há mais uma parte que poderia fazer parte do conjunto, mas que se encontra na vertical.

Mas o que é essa arquibancada? Não é qualquer estrutura. Aliás, é algo que perdeu seu lugar no tempo, uma coisa deposta de status de objeto útil no mundo dos negócios: ela foi feita com as tábuas de madeira do piso do “Chicago Board of Trade”. Ou seja, é um antigo trading pit, ou roda de negociações, da bolsa de valores de Chicago.

E é na Bolsa de Chicago que o valor dos grãos do mundo inteiro são definidos. Assim, o que acontece ali tem relação direta com questões que envolvem desde o agronegócio brasileiro até a preservação da Amazônia, temas importantes para os artistas. Por isso eles se interessaram pelo símbolo do tablado.

Primeiro, o trio pretendia reproduzir a peça, mas quando descobriram que os "pits" estavam sendo descartados como parte da passagem definitiva da Bolsa às transações digitais, começou uma corrida contra o tempo para que eles pudessem resgatar o último que ainda restava. Pois é, a imagem de vários homens juntos gritando ao telefone, tão reproduzida pelo cinema e presente no nosso imaginário, agora é basicamente coisa do passado.

Em Deposição, temos, então, um objeto que deixa seu universo original e que, quando colocado em uma exposição de arte, passa a ser percebido de outro modo.

Mas não pense que a proposta aqui é assimilar a arquibancada com um valor museológico, ou de preservação de patrimônio histórico. A partir da apropriação dos artistas, essa estrutura, que promovia trocas que tinham por centro o dinheiro, é subvertida em seu uso e significado. Na 34ª Bienal, a antiga arena de negócios se tornou o espaço onde acontece a programação pública da mostra e uma área que também pode ser livremente ocupada pelos visitantes – inclusive você.

Carmela Gross, 1968-1969

Carmela Gross

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A Carga

1968

Barril

1969

Presunto

1968

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Oi! Eu sou a Adriana Couto e vou te acompanhar pelas próximas 5 faixas deste audioguia inclusivo da 34ª Bienal de São Paulo!

Vamos continuar no 1º pavimento da Bienal, onde vemos o conjunto de obras “A Carga”, “Barril” e “Presunto”, de Carmela Gross, artista paulistana nascida em 1946.

Não é a primeira vez que essas obras são expostas em uma Bienal de São Paulo. Elas foram mostradas pela primeira vez em 1969, na 10ª Bienal, uma edição que ficou conhecida como "A Bienal do Boicote", porque muitos artistas se recusaram a participar como forma de protesto à ditadura militar. Gross escolheu participar com obras que remetiam ao que se via nas ruas em um período de austeridade econômica, dando visibilidade a aspectos que o governo militar tentava mascarar.

Ao exibi-las novamente agora, os curadores nos convidam a refletir sobre quais significados essas obras tinham à época e que talvez não façam mais sentido atualmente, bem como que novas leituras essas obras podem ter nos dias de hoje.

“A Carga” é uma estrutura de madeira, de três por quatro metros de dimensão e três metros de altura, coberta por um tipo de lona que se usa com frequência na cobertura de cargas de caminhão. Parte da lona é de cor alaranjada e a outra parte é verde escura. Ao recobrir a estrutura, a lona forma uma espécie de tenda ou abrigo.

“Barril” é um barril de ferro de tom escuro, redondo, com um metro e trinta centímetros de altura por 60 centímetros de diâmetro. Está semicoberto por um plástico cristal volumoso e com muitas marcas por estar todo amassado.

“Presunto” é uma peça arredondada produzida com a mesma lona alaranjada de “A Carga”, costurada e preenchida com isopor. Ela tem dois metros e oitenta de largura por dois metros de profundidade, com 50 centímetros de altura e se parece com um colchão.

Essas peças causam impacto pela rusticidade e por como se relacionam profundamente com a vida urbana do Brasil no século passado. Uma tenda que não se sabe o que cobre, um barril que era comumente usado para abrigar fogo e sinalizar obras, o presunto que era um tipo de cama ou colchão usado por pessoas em situação de rua.

Gross se utiliza dessas referências urbanas para falar de um Brasil encoberto por uma ditadura militar que durou mais de 20 anos. Quais novos sentidos essas obras adquirem ao serem exibidas hoje?

Retratos de Frederick Douglass, 1858

Frederick Douglass

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Frederick Douglass

c.1858

Cópia de daguerreótipo ou ambrótipo perdido

Foto: autoria desconhecida

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Subimos a rampa para o segundo pavimento e nos deparamos com uma parede enorme ocupada por 120 fotos, dispostas em 3 linhas. Todas as imagens são retratos de um mesmo homem: Frederick Douglass.

Douglass nasceu em Maryland, nos Estados Unidos, em 1817 ou 1818, dependendo da fonte. Era filho de uma mãe negra escravizada e de um pai, provavelmente branco, que nunca o reconheceu. Ultrapassou inúmeros obstáculos para aprender a ler e a escrever. Era um homem escravizado que, em 1838, por volta de seus vinte anos, conseguiu fugir para Nova York, onde a prática da escravidão havia sido abolida onze anos antes, mas a sensação de insegurança fez com que logo se mudasse para Massachusetts, onde adotou o sobrenome Douglass.

Ele foi editor, orador, palestrante, escritor, diplomata e articulista político. Foi autor de três biografias e, acima de tudo, ativista em prol da abolição do regime escravagista, tornando-se uma das figuras mais reconhecidas e admiradas nessa luta.

Em seus textos, Douglass reflete de modo crítico sobre o poder social da fotografia, e os cerca de 160 retratos existentes do escritor mostram como ele contrariava conscientemente os estereótipos que definiam a percepção coletiva do que significava ser negro nos Estados Unidos durante as décadas de conflito pela abolição da escravatura naquele país. São em sua imensa maioria retratos dele sozinho, sentado, em pé, de perfil ou de frente, sempre um elegante homem negro vestido com esmero e numa pose solene.

Aqui estão expostas 120 fotos de 60 por 40 centímetros cada, impressas em papel fine art, adesivadas em chassi de madeira e emolduradas em moldura poster caixa com bordas pretas.

Na primeira foto está um jovem Douglass, sem barba nem bigode, com uma expressão séria, olhar penetrante, os cabelos pretos um pouco armados e penteados para trás. Ele veste uma camisa branca de gola alta, uma gravata preta, e casaca também preta. Conforme as fotos avançam no tempo, ele adquire bigode e cavanhaque. O cavanhaque some às vezes, ficando apenas o bigode, que o acompanha em praticamente todos os retratos. Percebemos seu envelhecimento em seus cabelos que vão ficando um pouco mais compridos e grisalhos, e em sua pele, que vai adquirindo as marcas do tempo.

Douglass foi o homem estadunidense mais fotografado do século 19 e seus retratos foram uma maneira de propagar suas ideias abolicionistas. O primeiro deles foi realizado em 1841, e seu corpo foi fotografado pela última vez logo após sua morte, em 1895, quando já era mundialmente considerado um dos homens mais importantes na história dos Estados Unidos.

Paulo Kapela, 2010

Paulo Kapela

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Paulo Kapela

Sem título, 2010

Coleção: Nuno Pimentel

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Perto dos retratos de Frederick Douglass vemos as obras de Paulo Kapela.

Kapela nasceu em Angola, na província de Uíge, em 1947, mas fugiu para a República do Congo, onde estudou na Escola de Pintura Poto-Poto, em Brazzaville. Quanto tinha quase 50 anos, voltou para Angola e se estabeleceu em Luanda, onde viveu e trabalhou em condições bastante precárias até sua morte, em 2020, devido à Covid-19.

Com a consolidação de seu trabalho artístico, ele se tornou uma referência e uma fonte inesgotável de inspiração para a nova geração de artistas angolanos, graças à força extraordinária de suas obras e à sua figura carismática e quase profética.

Dizem que seu ateliê era preenchido com arranjos de objetos encontrados que combinavam referências tão diversas quanto a filosofia Bantu, o catolicismo, o rastafarianismo e iconografias socialistas.

Esse forte sincretismo é visto em suas pinturas e em suas instalações, nas quais ele usa tanto objetos profanos, da sociedade de consumo, quanto objetos sagrados, muitas vezes dispostos ao lado de retratos de personalidades da cena política ou das finanças angolanas.

Das mais de 30 obras dele expostas aqui, vou falar sobre uma sem título, de 2010. Sobre um pedaço retangular de um material de cor semelhante a papelão, grosseiramente cortado, foram colados dois papéis, também retangulares. Esses papéis estão simetricamente distribuídos, um à direita e outro à esquerda. O da esquerda é um recorte de um jornal e o da direita provavelmente uma página ilustrada. É difícil identificá-los completamente, pois sobre eles Kapela faz uma série de inscrições e desenhos com traços pretos. As bordas do papelão também estão repletas de inscrições onde se pode ler “África, Angola, Congo” ou “Banto, Cicicba, Bantu” em um emaranhado de palavras e referências.

Sobre o recorte de jornal à esquerda há outras inscrições, que se somam às notícias e parecem se integrar a elas, e um pequeno desenho do rosto de um homem. O rosto dele está cercado por moedas coladas, formando uma espécie de moldura, e de sua cabeça saem duas penas, também coladas. Na página à direita há o desenho maior de um rosto, ou de uma máscara: os olhos grandes, nariz largo, lábios grossos e um adorno na cabeça. Na sua boca está colado um cachimbo e, nos seus olhos, testa, queixo e orelhas, estão coladas moedas, como se fossem adornos da máscara. Na sua testa também estão coladas quatro penas.

As obras de Kapela são profundamente políticas. Seu trabalho é inseparável de sua vida. A produção de Kapela fez um esforço de apropriação e reescrita da história colonial de Angola, em busca de uma “crioulização” entre elementos da dominação ocidental e a realidade cultural e social local.

Juraci Dórea, 1983

Juraci Dórea

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Juraci Dórea

Estandarte do Jacuípe XXXVIII, 1983

Foto e cortesia do artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos agora às obras de Juraci Dórea.

O artista nasceu em 1944, em Feira de Santana, na Bahia. Em seu trabalho, ele mescla linguagens visuais contemporâneas com raízes e tradições sertanejas, criando uma poética própria e sintética.

Aqui vemos obras da série Estandartes de Jacuípe, que são composições abstratas ritmadas e simétricas feitas com couro de boi tratado e costurado com os mesmos processos usados para produzir selas e vestimentas de vaqueiros.

Os estandartes surgiram em 1974 a partir da pesquisa material que Dórea estava desenvolvendo sobre o couro. O título vem do Rio Jacuípe, porque é um rio que banha Feira de Santana e está associado à criação do gado.

Na série, ele parte de uma peça que geralmente está ligada a contextos nobres ou sagrados, o estandarte, mas a insere no universo sertanejo, relacionando-a com a figura do vaqueiro e da vaquejada e ao imaginário da região de Jacuípe. Para isso, ele incorpora recriações de elementos que observava no cotidiano dos vaqueiros, como os signos de sua indumentária, os ferros de marcar gado e os ferros das selas.

Dos quatro estandartes aqui expostos, vou descrever o Estandarte do Jacuípe XXXVIII, criado em 1983. Feito em couro, nanquim, metal e madeira, ele tem um metro e dezoito centímetros de altura por sessenta e cinco centímetros de largura. Na sua parte superior há sete furos com ilhoses onde tiras de couro prendem o estandarte a uma ripa de madeira. Na parte inferior, o couro é recortado formando um acabamento arredondado.

No centro da obra, acima e abaixo de uma forma circular, figuras brancas com detalhes em preto e marrom formam uma espécie de brasão dentro de um retângulo que deixa à mostra o fundo de couro. Em torno deste retângulo, uma camada em tom alaranjado com bordas circulares e linhas retangulares se destacam sobre o fundo preto do couro recortado.

A última camada, de dentro para fora, tem o tom marrom escuro do couro e, nas duas laterais, um ornamento branco, com duas linhas horizontais. Na parte central inferior dessa camada há ainda mais um ornamento branco, em formato retangular vertical, com a ponta de baixo recortada como se tivesse três pétalas, lembrando uma flor de lis virada de cabeça para baixo.

Antonio Dias, 1968

Antonio Dias

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Antonio Dias

Terror Square (panther-darkness), 1968

Cortesia de Marconi Foundation Modern Art

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Na última parada do meu percurso com você, vou falar das obras do Antonio Dias, que nasceu em 1944, em Campina Grande, na Paraíba, e faleceu em 2018 no Rio de Janeiro.

Ainda muito jovem, na década de 1960, Antonio Dias se destacou na cena artística carioca. Sua obra desse período incorporava algum dos elementos da arte concreta, movimento surgido em São Paulo no início da década, mas fazia isso de maneira crítica, adicionando signos pop como formas voluptuosas pintadas de vermelho, ossos e silhuetas em preto e branco e ícones de explosões e armas, chegando a extrapolar o plano da pintura com elementos tridimensionais.

As obras que vemos aqui foram pintadas por ele entre 1968 e 1972. Foi nesse período que os elementos figurativos e explícitos que caracterizavam sua produção foram reduzidos e condensados até que ele chegasse a uma obra radicalmente sintética. Essa produção consolidou a posição de Dias em um campo de crítica à própria arte como linguagem, sistema ideológico e área de investigação.

Das pinturas aqui presentes, vou falar mais sobre "Terror Square (panther-darkness)", pintada em 1968 com tinta acrílica sobre uma tela de oitenta e seis centímetros de altura por oitenta e seis centímetros de largura.

O fundo da tela é completamente preto e todos os elementos que aparecem na obra são brancos. Na borda da tela há um quadrado branco feito com um fino traço, formando uma espécie de moldura. Acima dela, no canto superior esquerdo está escrito “Terror Square”, ou "terror quadrado", o nome da obra. No centro do quadro há outro quadrado feito com uma fina linha tracejada. Na linha de baixo desse quadrado tracejado, na parte interna dele está escrito “Panther”, ou "pantera", e na parte externa está escrito 'Darkness", ou "escuridão". As palavras encontradas na tela são escritas em letras do tipo que são usadas na imprensa, todas maiúsculas.

Essa pintura textual, assim como as outras aqui expostas, pode também ser lida como um luto estético pelo avanço de políticas repressivas no Brasil com o Ato Institucional número 5 decretado no final de 68. Em uma anotação, o próprio artista as definiu como exercícios de uma “arte negativa para um país negativo”.

Claude Cahun, 1928

Claude Cahun

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Claude Cahun

Self-portrait (reflected image in mirror, checqued

jacket), 1928

Cortesia de Jersey Heritage

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Oi! Agora sou eu, a Sara Bentes! Vou te acompanhar pelas próximas cinco faixas.

Começamos nosso percurso com as obras de uma das expoentes da fotografia surrealista, Claude Cahun. Esse é o nome artístico da francesa Lucy Schwob. Além de fotógrafa, Cahun se destacou também como poeta, ensaísta e autora teatral. Ela é um exemplo da figura de artista total, e sua prática é inseparável da sua vida pessoal.

Até hoje Cahun é referência visual fundamental no campo dos estudos de gênero. Suas fotografias foram radicalmente originais em sua época. Muitas vezes elas eram feitas em sua casa mesmo, com a colaboração de seu parceiro romântico Marcel Moore (nascido Suzanne Malherbe). De tão radicais que eram, essas fotos não foram expostas publicamente antes da morte de Cahun, em 1954. Foi só na década de 1990 que o conjunto de sua obra começou a receber atenção mundial.

Em muitos de seus autorretratos, ela se disfarça, usa máscaras. Às vezes ela exibe uma feminilidade ultrajante, enquanto, em outras, é de uma masculinidade assertiva, raspa o cabelo e encarna personagens diversos como o dândi ou o esportista. Além da diversidade de personagens e personalidades exibidas, ela utilizava recursos como reflexos, simetrias e multiplicação de imagens como formas de escapar do binário e do previsível.

Entre as 45 fotografias aqui expostas, destaco um retrato intitulado "Self-portrait (reflected image in mirror, checqued jacket)", ou “Imagem refletida no espelho com jaqueta xadrez”, feito em 1928. Emoldurada, a obra tem 50 centímetros de altura por 30 centímetros de largura. É uma fotografia em preto e branco onde Claude Cahun é vista da altura do quadril para cima, em pé e de lado, com o rosto voltado para nós. Ela está ao lado de um espelho de tamanho médio, que reflete seu rosto e ombros. A artista veste uma jaqueta xadrez e tem a mão direita colocada perto da gola que está levantada, cobrindo sua nuca. Ela olha na direção da câmera e sua imagem refletida a mostra olhando para o lado oposto, num misto de atenção e desinteresse. Seus cabelos são loiros e bem curtos, sua pele é branca, o nariz fino e proeminente, a boca pequena de lábios grossos. As duas Cahuns parecem fundir-se no efeito da imagem refletida no espelho.

O resultado é uma figura andrógina de duas cabeças, um enigma de olhar profundo que parece lançar um desafio ao espectador.

Hsu Che-Yu, 2019

Hsu Che-Yu

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Hsu Che-Yu

Single Copy, 2019

Still de vídeo

Cortesia do artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Nesta sala fechada, encontramos a videoinstalação de 2019 intitulada "Single Copy", ou, em português, "Cópia única", do taiwanês Hsu Che-Yu.

Che-Yu nasceu em 1985 e vive em Taipei. Para realizar esta obra, ele parte de um grande evento midiático que aconteceu em seu país antes mesmo dele nascer.

O vídeo investiga as memórias de Chang Chung-I, que nasceu unido pelo tronco ao seu irmão siamês Chang Chung-Jen durante o período em que uma lei marcial mantinha Taiwan sob rígido controle da República Popular da China.

Em 1979, a cirurgia de separação desses irmãos foi televisionada para toda Taiwan e acabou virando uma metáfora da separação geopolítica da nação. A cirurgia foi um sucesso, e os irmãos cresceram como celebridades. Chang Chung-I, o irmão com quem Che-Yu trabalhou na obra, inclusive se tornou ator.

O vídeo tem duração de cerca de 21 minutos com áudio em chinês e legendas em português. Ele mostra Chung I, um homem asiático de 44 anos, que tem cabelos pretos lisos e anda apoiado em muletas por uma das pernas. Ele passa por cenários corriqueiros de sua cidade e visita lugares familiares para ele e para o irmão. O vídeo biográfico tem um tom melancólico e reflexivo.

Chung I realiza ações banais: examina o próprio apartamento e objetos que lembram seu irmão; dá voltas no mesmo lugar em seu triciclo motorizado; visita um lugar montanhoso. Em alguns momentos, a câmera passeia bem de perto sobre marcas em sua pele. Depois, uma projeção 3D coloca os filhos e a esposa diante dele. E, quase no fim, são mostradas imagens dele e seu irmão em uma estação de esqui.

Com uma voz em off, ele faz reflexões sobre sua condição e a morte de seu irmão, que aconteceu em 2019. Ele cria, com esses fatos, um diálogo existencial a partir de conceitos como perfeição e imperfeição.

O filme termina com Chang Chung I tirando um molde de seu corpo, algo que remete à sua infância. Antes da operação que o separou de seu irmão, os médicos tentaram tirar um molde em silicone de seus corpos unidos, mas isso foi impossível porque os bebês não ficavam parados. Agora, um Chung I adulto e enlutado faz um molde de seu tronco, quadril, parte dos antebraços e parte da coxa de sua única perna.

Uma das peças produzidas com esse molde complementa a videoinstalação. Trata-se da escultura de uma perna humana, uma reprodução de 70 cm de altura da perna que ficou com Chang Chung I – unidos pelo tronco, a outra perna ficou com seu irmão. Sua presença alude ao suporte que eles representavam um para o outro e à falta que restou após a morte de Chung-Jen.

Silke Otto-Knapp, 2020

Silke Otto-Knapp

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Silke Otto-Knapp

Stack, 2020

Cortesia de Regen Projects, Los Angeles; Galeria Buchholz Berlim/Colônia/ Nova York; greengrassi, Londres

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos agora ao painel "Stack", ou "Pilha", de Silke Otto-Knapp, artista alemã radicada em Los Angeles. A obra de 2020 é produzida em aquarela sobre tela e composta por seis painéis, sendo que cinco deles tem 150 x 100 centímetros e o sexto tem 150 x 170 cm. Unidos, formam um conjunto semi-arquitetônico com 3 metros de altura por três metros e setenta centímetros de largura, mas as telas também podem funcionar de forma autônoma.

Otto-Knapp desenvolveu uma linguagem pictórica particular. Ela primeiro transfere seus desenhos para a tela e, em seguida, elabora as formas com camadas de pigmento aquarela preto, que, depois, pulveriza com água. À medida que a tinta se dissolve, ela limpa a superfície para que a cor seja drenada em certas áreas e se fixe em outras durante o processo de secagem.

A obra de Otto-Knap apresenta silhuetas de corpos que se alongam, se encolhem e se contorcem, como se estivessem no meio de uma performance ou preparando-se para uma. São corpos que parecem dançar em posição coreografada, como em uma experiência de movimento.

Os seis painéis trazem imagens de corpos em posições que remetem a movimentos da dança contemporânea e de alongamento. Três deles têm fundo preto com os corpos em tom acinzentado claro. O primeiro mostra uma mulher ajoelhada e outro personagem com o tronco sobre as coxas da mulher, com as pernas elevadas e os joelhos levemente flexionados. No segundo painel há apenas uma mulher que está sobre os joelhos e as mãos, como se andasse em quatro apoios. O terceiro painel, de fundo preto, traz um personagem com joelhos semi flexionados e as costas inclinadas, levando a cabeça para baixo como se olhasse o chão. Carrega sobre suas costas as pernas de uma segunda mulher que está em sua frente, de cabeça para baixo e apoiada nas mãos.

Os outros três painéis tem fundo cinza claro com as silhuetas em preto. O primeiro deles apresenta três figuras femininas que se encostam e se apoiam: a primeira, à esquerda, está com o tronco inclinado, com o braço estendido em direção ao chão, quase como uma seta; a segunda, entre as outras duas, também inclinada, apoia-se sobre as costas da primeira; a terceira, atrás da segunda, está menos inclinada, quase na vertical, mas também com pontos de conexão entre seus corpos. O segundo painel traz mais três mulheres, sendo que a primeira, a da esquerda, com joelhos semi-flexionados, está encostada nas costas da segunda, que tem a terceira sobre suas coxas, como se sentasse em seu colo. O terceiro e último painel de fundo acinzentado mostra um personagem com as costas apoiadas no chão, braços estendidos para trás e pernas ao alto com os joelhos sobre a cabeça.

O trabalho de Silke Otto-Knap é influenciado por imagens e conceitos do campo da dança, do teatro e da performance do século 20. Em "Pilha", observamos o fluxo orgânico do movimento colaborativo, a gravidade e o peso característicos dos grupos de dança.

Jaune Quick-to-See Smith, 2004

Jaune Quick-to-See Smith

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Jaune Quick-to-See Smith

Which Comes First (The Insects or the Humans), 2004

Coleção: Garth Greenan Gallery

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos ao terceiro pavimento e nos deparamos com um conjunto de obras de Jaune Quick-to-See Smith.

Ela nasceu em 1940 na Missão Indígena de St. Ignatius, nos Estados Unidos, e cresceu em constante deslocamento, porque o trabalho de seu pai como treinador de cavalo demandava que viajassem muito.

Seu estudo formal como artista foi longo e descontínuo, pois teve de ser interrompido várias vezes por necessidades financeiras ou por preconceitos de classe, raça e gênero.

Mas, apesar das dificuldades, a obra de Quick-to-See Smith conquistou espaço no final da década de 1970 justamente por confrontar os padrões eurocêntricos e formalistas do circuito oficial da arte.

Desde 1980, ela também tem atuado como curadora, educadora e articuladora cultural, e seus esforços têm obtido grandes avanços para a luta por reconhecimento da arte indígena americana.

Das 10 obras da artista expostas aqui na Bienal, vou falar sobre uma de 2004 que se chama: “O Que Vem Primeiro (os insetos ou os humanos)”. Ela foi produzida em técnica mista sobre tela e tem um metro e oitenta e dois centímetros de altura por um metro e vinte de largura.

A tela tem o fundo colorido com áreas em branco, amarelo e vermelho, onde a tinta parece escorrer, entrecruzando e sobrepondo cores. Ao centro se destaca a figura de um corpo humano sem a cabeça e sem os braços, como se fosse uma escultura. No peito da figura humana há a reprodução realista de um coração humano, que lembra a imagem de uma mão fechada, em vermelho e amarelo, sobre uma camada de tinta branca, o que faz com que pareça que o coração está iluminado. O corpo tem uma tonalidade acinzentada, seus tornozelos e seus pés são vermelhos. Essa combinação de cores na parte inferior do corpo e no coração dá a impressão de que há calor nessas áreas. Em volta do corpo estão enormes formigas pretas e algumas delas estão com a cabeça encostada no corpo, dando a impressão de que o estão devorando.

A obra de Quick-to-See Smith se encontra no campo da pintura moderna e faz parte dos debates artísticos sobre cultura e linguagem.

Seu trabalho às vezes se aproxima da colagem, às vezes do palimpsesto. Palimpsesto é uma técnica de reaproveitamento de papel da Antiguidade: nessa época, os papiros ou pergaminhos usados eram raspados para que os textos que os ocupavam pudessem dar lugar a outros.

Com essas técnicas, muitas vezes a leitura de um símbolo ou de uma frase empregada pela artista é desafiada pelo modo como ela é recoberta por camadas de tinta ou como se combina com elementos associados a outras simbologias e discursos.

Isso porque sua pintura cria sobreposições de sistemas de representação e modos de compreender o mundo, provocando choques que podem ter efeito crítico, irônico ou enigmático.

Pia Arke, 1998

Pia Arke

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Pia Arke

Jord til Scoresbysund [Soil for Scoresbysund], 1998

Cortesia de Soren Arke Petersen

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Na minha última faixa, vou apresentar o trabalho de Pia Arke, que nasceu na Groenlândia, em 1958, e faleceu na Dinamarca, em 2007.

O conflito colonial entre estes dois territórios faz parte da história de Arke. A Groenlândia é considerada a maior ilha do mundo e é uma região autônoma do reino da Dinamarca.

Arke é filha de pai dinamarquês e mãe groenlandesa e passou a infância na Groenlândia sem aprender a falar a língua local.

Em sua obra, ela combina sua própria imagem e herança miscigenada com referências históricas e geopolíticas para abordar as relações de poder entre a Dinamarca e a Groenlândia, os problemas de identidade que surgem da exploração colonial e os estereótipos ocidentais da identidade e cultura inuítes.

A obra “Jord til Scoresbysund” ou “Solo para Scoresbysund”, em português, é de 1998 e está ligada a uma das estadias da artista na cidade de Scoresbysund, que fica na costa da Groenlândia, quando sua cunhada lhe disse que a borra de café deveria ser jogada pela janela para fertilizar o solo pedregoso.

A obra é uma instalação composta por centenas de filtros de café, amarrados com barbante de algodão branco e dispostos um juntos um ao outro formando um quadrado com cerca de um metro por um metro.

Os filtros de café usados ainda possuem café em seu interior e estão amassados, de modo que o café não caia. Desta forma, cada um deles se assemelha a um pequeno pacote. Da cor branca original dos filtros não resta nada. Eles estão todos amarronzados em tonalidades que vão do bege ao marrom escuro.

Imagino que você esteja se perguntando o que aconteceu com todo o café. Ele foi bebido pela equipe da Bienal! São mais de 100 profissionais trabalhando ininterruptamente por 2 meses durante a montagem da mostra, então, bastou armazenar os filtros do café bebido pela equipe para ter a matéria-prima necessária para a realização desta obra.

Esta instalação é um exemplo de como Arke dá novos significados a materiais apropriados por meio de sua prática conceitual e performática. Seu corpo e seu rosto – em si mesmos carregados da história da representação étnica – e marcos naturais da Groenlândia são temas recorrentes em seus trabalhos, que apresentam, lado a lado, diferentes camadas da realidade.

Giorgio Morandi, 1946

Giorgio Morandi

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Giorgio Morandi

Natureza morta, 1946

Cortesia de acervo MAC USP

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Olá! Agora sou eu: André Trigueiro. Vou te acompanhar até o final deste seu percurso pela Bienal!

Você já ouviu falar no Giorgio Morandi? Ele nasceu em 1890 na cidade italiana de Bolonha, onde morou a vida inteira com suas três irmãs no mesmo apartamento em que nasceu, até sua morte em 1964.

Morandi é considerado por muitos o maior pintor italiano do século XX e um dos mais influentes artistas do século passado. Mas, para alguém que não conhece muito bem seu trabalho, isso pode parecer surpreendente. Isso porque sua obra se limita a pouquíssimos temas, como as vistas do povoado de Grizzana, quase todos os verões da sua vida, ou as célebres naturezas-mortas de garrafas e potes, pintadas com mínimas variações ao longo de décadas.

É, Morandi era um homem de hábitos. Sua biografia previsível e metódica faz muito sentido quando vemos suas pinturas, em que os objetos e os motivos se repetem indefinidamente. Seus detratores diriam que seus temas se repetem até o tédio, mas outros veem nessa repetição uma forma de tornar tangíveis tanto os objetos em si, quanto tudo que se pode perceber por meio deles: as sutis mudanças na luz da tarde, a poeira que neles se deposita, a passagem do tempo que se faz visível na própria matéria das garrafas que reaparecem uma e outra vez, quadro após quadro, ano após ano.

Morandi tem seis obras expostas na Bienal, e eu destaco aqui uma natureza-morta. É uma pintura em óleo sobre tela realizada em 1946. Tem 28 centímetros de altura por 38 centímetros de largura e faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC USP, que fica aqui perto da Bienal, do outro lado da avenida. A pintura é predominantemente em tons bege-amarronzados, esmaecidos, e mostra o tampo de uma mesa bege que quase se confunde com o fundo do quadro, que é de um bege um pouco mais amarelado. Sobre a mesa há quatro objetos: uma xícara, que é única coisa branca no quadro; uma garrafa com o bojo bem largo que se afunila terminando em um gargalo comprido e fino; um pão arredondado e alto com uma parte cortada, por onde se vê a massa mais clara do que a casca; e, ao fundo, uma jarra de que só é possível identificar o gargalo com listras claras e escuras. A luz incide sobre os objetos da esquerda, onde eles são mais claros, para direita, onde sua sombra é projetada.

Assim como Morandi, diversos artistas visuais, escritores, músicos e diretores de cinema do século 20 desenvolveram obras que se impunham por uma espécie de repetição silenciosa e pela simplicidade em um mundo cada vez mais ruidoso.

A pintura de Alfredo Volpi, o cinema de Yasujirō Ozu ou a poesia de João Cabral de Melo Neto são exemplos de produções semelhantes à de Morandi, em que as coisas se apresentam pelo que elas são, como se isso fosse simples. Afinal, como o artista disse uma vez ao seu amigo, o escritor italiano Giuseppe Raimondi, seus quadros são feitos das “mesmas coisas de sempre. Você as conhece. São sempre as mesmas. Por que deveria mudá-las? Funcionam bastante bem, você não acha?”.

Belkis Ayón, 1993

Belkis Ayón

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Belkis Ayón

Sikan, 1993

Foto: José A. Figueroa

Cortesia: © Belkis Ayón Estate

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Agora chegamos às obras de Belkis Ayón. Ela nasceu em 1967 em Havana, Cuba, onde faleceu aos 32 anos. Sua produção orbita em torno da presença de um segredo que é mantido oculto por diversos signos de silêncio e escuridão.

Ela estudou no Instituto Superior de Arte de Havana entre 1986 e 91, onde se familiarizou com a calcografia, uma técnica de gravura em que a matriz de impressão resulta da colagem de diversos materiais sobre um suporte rígido.

As matrizes de calcografia de Belkis Ayón são feitas de uma variedade de materiais: papelão, lixa, diferentes qualidades de papel, gesso e verniz; todos eles colados com metilcelulose em um papelão. A colagem de todos esses materiais torna a matriz tão forte que pode ser fixada diretamente nas paredes sem nenhum suporte ou moldura.

Ainda na faculdade, ela também pesquisou a sociedade secreta afrocubana Abakuá, que influenciou profundamente sua produção. Os fundamentos do Abakuá datam do período colonial, e muitos de seus rituais só são conhecidos por iniciados – que, aliás, só podem ser do gênero masculino.

Nesta Bienal, temos 18 obras expostas, mas vamos nos aprofundar na que retrata a entidade Sikán. A obra tem dois metros de altura por um metro e quarenta de largura. Belkis Ayón interessou-se pelo modo como essa entidade, recorrente em sua produção, condensa noções de sacrifício, tabu, segredo e traição. A matriz de calcografia de que falamos aqui foi feita em 1991 e tem diversos dos recursos que a artista associa a essa mitologia em geral e a essa personagem em particular.

Na obra, Sikán é representada sentada em um trono preto. Sua cabeça, num tom de cinza um pouco mais claro que o do trono, não tem cabelos. Seus grandes olhos amendoados estão muito abertos e são a única marca expressiva em seu rosto, que não tem boca, nariz ou orelhas. A pele do seu corpo tem o que parecem ser escamas avermelhadas nos ombros e nas pernas, enquanto seus braços e tronco têm uma coloração vinho. Ela está com as duas mãos nas coxas e, em uma parte acinzentada de sua barriga, há um pequeno peixe branco. Uma serpente branca, sem nenhum detalhe, se apoia no encosto da poltrona e no ombro de Sikán. A paisagem ao fundo do trono tem uma coloração marrom clara e nela se veem grafismos na forma da letra “W”, que remetem às águas de um rio. Sobre toda imagem há uma arco adornado da mesma cor marrom clara do fundo e nele há um peixe branco com escamas.

Muitas são as versões da história de Sikán. Ela sempre começa sendo apresentada como uma princesa que, ao buscar água no rio, inadvertidamente capturou Tanzé, o peixe encantado que garantia a prosperidade de seu povo. O que aconteceu depois é narrado de formas bastante variadas, mas todas elas têm algo em comum: esse acaso resultou na morte do peixe e na perda de seu som divino. Em algumas versões, Sikán teria sido vista como alguém que absorveu seu poder; em outras, ela contou seu segredo a um amante de outra etnia, sendo então aprisionada e sacrificada por seu próprio povo. Há, porém, uma versão ainda mais dramática, que foi registrada pela antropóloga e poeta Lydia Cabrera em um texto de 1969. Ela diz: “a verdadeira dona do Poder era uma mulher que os homens mataram para apoderar-se de seu Segredo”.

Abel Rodríguez, 2020

Abel Rodriguez

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Abel Rodríguez

Árbol de la vida y la abundancia, 2020

Coleção particular

Cortesia do artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos agora aos trabalhos de Abel Rodríguez, ou Don Abel, como é conhecido.

Ele nasceu em 1944 em Cahuinarí, na Amazônia colombiana, e é um sabedor do povo Nonuya. Isso significa que ele foi treinado desde a infância para ser um “nomeador de plantas”, a pessoa que guarda o conhecimento da comunidade sobre as diversas espécies botânicas da floresta, os usos práticos delas e também a importância ritual de cada uma.

Após passar a maior parte da vida na floresta, ele se mudou para Bogotá no começo dos anos 2000, quando tinha praticamente 60 anos. Lá, começou a trabalhar para uma fundação de preservação ambiental. Como ele não era alfabetizado em castelhano, a forma que encontrou para transmitir seus conhecimentos foi desenhar a floresta, de memória, mesmo sem nunca ter tido uma educação formal nesse sentido.

Seus desenhos não podem ser considerados apenas “obras de arte” no sentido que essas palavras têm na cultura ocidental, já que são, antes de mais nada, uma linguagem que Don Abel usa para difundir seu conhecimento.

Das 14 obras aqui expostas, destaco a “Árvore da Vida e da Abundância”, de 2018, feita em lápis e tinta sobre papel. A obra tem um metro e meio de altura por um metro e meio de largura. Nela, está retratada uma gigantesca árvore com um grosso tronco marrom, que vai ficando mais fino à medida que sobe e se ramifica em galhos. Podemos perceber os galhos e a parte superior do tronco através da folhagem verde da imensa copa. Suas delicadas folhas são retratadas individualmente e cuidadosamente pintadas em diversas tonalidades de verde.

Na copa, é possível identificar alguns frutos vermelhos e amarelos, além de algumas folhagens mais pontiagudas que parecem ser de outra espécie que vive nos galhos da árvore. Dela, caem inúmeros frutos amarelos, verdes e vermelhos em direção aos animais logo abaixo. São dezenas deles: pacas, cotias, quatis, aves… E é pelo diminuto tamanho que estão representados que podemos verificar a imensidão da árvore. No chão, entre dois animais, bem próximo do grosso tronco, está um pequeno e inofensivo machado.

Mais que representar, os desenhos de Don Abel apresentam. As árvores e as plantas são pacientemente construídas no papel, folha por folha, galho por galho, fruto por fruto. Quase nunca as plantas são apresentadas sem os animais que se nutrem delas. Isso porque Don Abel quer fazer um retrato fiel da floresta. Para tanto, ele precisa retratar o ecossistema como ele é, ou seja, colocando cada elemento em relação inseparável com tudo o que o rodeia. Na natureza, nada vive sozinho.

Ximena Garrido-Lecca, 2017/2020

Ximena Garrido Lecca

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Ximena Garrido-Lecca

Insurgência botânicas: Phaseolus Lunatus [Insurgencias botánicas: Phaseolus Lunatus], 2017/2020

Foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Quase no final de nosso percurso pela Bienal, nos deparamos com uma grande plantação de um tipo de feijão em uma estrutura hidropônica. É a instalação "Insurgências botânicas: Phaseolus Lunatus”, obra de 2017 da peruana Ximena Garrido-Lecca.

Muitos dos trabalhos da artista partem do complexo imaginário de sua terra natal, que é marcado pelo choque entre a milenar cultura andina e as violências, particularidades e contradições introduzidas pelos processos de colonização.

No caso de "Insurgências botânicas", a ideia para a obra surgiu quando ela visitou as ruínas de uma cidade construída por volta de 200 a.C. por uma civilização ainda mais antiga que a Inca. Lá foram encontradas sementes da espécie Phaseolus Lunatus, um tipo de feijão branco com manchas pretas que todos achavam que já não existia mais.

Pesquisando sobre a planta, a artista chegou até uma cultura peruana pré-hispânica ainda mais antiga que a Inca, a Moche, e dois aspectos de sua história chamaram sua atenção. O primeiro é que existe uma teoria que as manchas pretas presentes nas sementes do feijão constituíam os signos de uma escrita ideogramática desse povo. O segundo, é que essa cultura é conhecida por ter desenvolvido complexos sistemas de irrigação.

Por isso, em sua instalação, Garrido-Lecca reativa essa história simbolicamente. A obra é composta por uma estrutura de madeira, semelhante a uma arquibancada com três lados. Sobre esta grande estrutura com mais de 8 metros de extensão e cerca de 2 metros de altura estão grossos canos de barro com orifícios de onde saem as folhas verdes bem vivas das Phaseolus lunatus. Em cada uma das aberturas há um fino fio de náilon que se prende em uma estrutura quadrada que cobre toda a instalação. Os ramos da planta crescem e vão subindo por esses fios como uma trepadeira, encontrando-se com a estrutura disposta acima delas. Desde a base da arquibancada, próxima ao chão, até a parte mais alta dela, são doze fileiras de canos com dezenas de aberturas em intervalos simétricos e regulares. Esses canos servem como sistema de irrigação para o crescimento das plantas.

Além disso, a instalação contém mais dois elementos: uma mesa em que são exibidas reproduções das favas em cerâmica e uma parede em que essas mesmas favas estão representadas. A artista imaginou como essa escrita Moche poderia funcionar e traduziu, nessas duas peças, um capítulo do livro "A extirpação da idolatria no Peru", uma espécie de manual da colônia, datado de 1621, sobre como erradicar os costumes indígenas.

Essa obra está no Pavilhão Ciccillo Matarazzo desde fevereiro de 2020, quando a programação expositiva da 34ª Bienal foi iniciada, justamente com uma individual de Ximena Garrido-Lecca. Em novembro do mesmo ano, ela integrou a exposição coletiva Vento, segunda etapa de construção pública da 34ª Bienal.

Com sua ênfase no processo ininterrupto de transformação de tudo que é vivo (de uma planta a uma cultura), esta obra simboliza a estratégia curatorial de conceber a Bienal como processo e não como algo fixo ou cristalizado. Nesta sua última apresentação, ela enfatiza que nada permanece idêntico: nem a obra de arte, nem quem olha para ela, nem o mundo ao redor.

Ana Adamović, 2013/2014

Ana Adamovic

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Ana Adamović

Dois coros [Two Choirs], 2013/2014

Still de vídeo

Cortesia da artista

Fotos da Exposição: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Chegamos ao final da nossa visita à 34ª Bienal com a obra “Two Choirs” ou em português “Dois coros”, da sérvia Ana Adamović.

Na cidade de Belgrado, onde Adamović nasceu, há um museu em que são expostos vários presentes recebidos pelo marechal Tito quando ele era chefe de Estado da então Iugoslávia, um país que existiu entre 1918 e 92.

O museu tem faqueiros de prata, entalhes em marfim, objetos artesanais típicos de países distantes... tem até fragmentos de solo lunar, que foram ofertados pelo governo dos Estados Unidos a Tito em 1969, ano em que o homem pisou na lua, pela primeira vez.

Ao lado desses objetos exóticos, encontra-se algo bem mais prosaico: centenas de álbuns de fotos que, ano após ano, as escolas dedicavam ao mandatário em seu aniversário.

O conteúdo dos álbuns se repete: cenas registradas em salas de aula, em dias festivos, em atividades esportivas. E quase sempre eles contêm ao menos uma foto de um coro em que se veem os alunos entoando canções que os retratos em preto e branco não nos deixam escutar.

Ana Adamović poderia estar em algum desses álbuns. Ela pertence a uma geração de artistas sérvios que nasceu sob o governo de Tito e viveu, na infância ou na adolescência, a dissolução da República Socialista Federativa da Iugoslávia. Muitas das obras desses artistas tematizam os últimos anos da república que deixou de existir: seus valores, seus hábitos, seu imaginário.

É o caso de “Dois coros”, que parte de uma fotografia do álbum produzido em 1962 pelo I [Primeiro] Instituto para a Educação de Crianças Surdas de Zagreb-Ilica. No retrato, vemos um coro em que as crianças vocalizam canções que elas mesmas não podem ouvir. A pergunta que a artista se faz é: seria aquele um sistema tão inclusivo que permitia até aos cidadãos surdos, historicamente excluídos, cantarem? Ou seria um sistema tão autoritário que os obrigava a cantar?

A obra de Adamović traz a reprodução de uma dessas fotos. A imagem em preto e branco mostra um grupo de alunos surdos sobre um palco, diante de uma plateia. À frente dos alunos e de costas para a plateia está uma mulher de vestido escuro. Todas as crianças olham para ela. Na cortina ao fundo há algumas frases em iugoslavo e o desenho de uma foice e um martelo, símbolo da União Soviética e do comunismo.

Ao lado da foto, é exibido um vídeo que mostra uma apresentação do coral inclusivo de Belgrado, de que participam crianças surdas e ouvintes. Para a filmagem, a artista pediu que as crianças interpretassem, apenas em língua de sinais, uma canção patriótica dos anos 1960 que se chama “We Create Boldly” ou em português “Nós Criamos com Ousadia”.

No vídeo de fundo preto, um grupo de seis meninas e seis meninos, com cerca de 12 anos de idade, todos de pele branca, vestindo camiseta preta e calça jeans, estão sobre uma pequena arquibancada de três degraus também pretos.

O grupo silencioso interpreta a letra da música em língua de sinais, movimentando os braços e as mãos simultaneamente, sinalizando como em uma coreografia acompanhada de significativas expressões faciais.

Em um coro, cada voz contribui com seu timbre singular para criar uma composição única. Não é diferente aqui, já que o mesmo sinal ganha características singulares na interpretação de cada criança, e é apenas no conjunto de seus corpos que a harmonia pode ser criada.

Terminamos estes ensaios sonoros com a obra de Ana Adamović para reforçar o caráter inclusivo deste audioguia e a beleza da diversidade.

Obrigado por fazer esta visita comigo e meus colegas Marília Gabriela, Adriana Couto e Sara Bentes.

Se você estiver nos ouvindo do Pavilhão Ciccilo Matarazzo, há ainda muito a explorar na 34ª Bienal. Continue passeando pela exposição e crie seus próprios percursos.

Caso você esteja ouvindo de qualquer outro lugar, deixo o convite para você visitar a exposição! A entrada é gratuita. Há centenas de obras, infinitas relações e uma equipe qualificada esperando por você!

Ficha técnica da exposição

O projeto curatorial da 34ª Bienal de São Paulo pretende ampliar a mostra, multiplicando as oportunidades de encontro com a arte e reivindicando, ao mesmo tempo, o direito à opacidade tanto das expressões artísticas quanto das identidades de sujeitos e grupos sociais.

O ponto de partida do projeto curatorial da 34ª Bienal de São Paulo, Faz escuro mas eu canto, foi o desejo de ampliar a mostra, desdobrá-la, ativar cada momento de sua construção e aguçar o dinamismo de uma exposição dessa escala. Reconhecer, assim, a potência que existe em reunir um grande conjunto de obras, condensando o trabalho de uma centena de artistas e outros pensadores num único espaço, sob um único título. Conscientes, também, das limitações e contradições do formato de exposições de grande porte, e buscando dialogar com os públicos, tão amplos e tão distintos, que visitam a Bienal há décadas, propusemos expandir esta edição no espaço e no tempo. Inaugurada oficialmente no dia 08 de fevereiro de 2020, a 34ª Bienal se encerraria em dezembro do mesmo ano, mas teve sua duração estendida para o fim de 2021, em decorrência da pandemia de Covid-19.

No novo cenário, vários aspectos do projeto original foram mantidos, enquanto outros tiveram que ser modificados e adaptados. Apesar de significativas, essas modificações não alteram no cerne a concepção e o caráter do projeto, ao manter sua premissa central, qual seja, a de buscar construir de maneira transparente e dinâmica uma exposição a partir de uma metodologia fundada na troca e nas relações entre curadores, artistas, obras e público. Continuamos querendo multiplicar as oportunidades de encontro com a arte, possibilitar que conversas e trocas com as obras aconteçam em vários contextos – com diferentes músicas de fundo, diferente iluminação, diferentes acompanhamentos e acompanhantes – porque cada uma dessas situações é capaz de trazer à luz aspectos novos de cada obra e pensamentos ou sensações novas em cada observador. Por outro lado, também não se trata de que tudo venha à luz. Reivindicamos o direito à opacidade, tanto das expressões da arte quanto das identidades de sujeitos e grupos sociais. Não precisamos entender tudo, nem nos entender todos; trata-se de falar nossa língua sabendo que há coisas que outros idiomas nomeiam e nós não sabemos expressar.

Para criar um idioma comum, sabíamos que não poderíamos prosseguir abstratamente, a partir de um título ou um tema que indicasse o rumo, porque acabaríamos assim impedindo os desvios, que tanta falta nos fazem. Começamos, então, falando em artistas e obras. A partir de conversas sobre as pesquisas e estratégias de alguns artistas, um conjunto de preocupações e interesses compartilhados foi se agrupando, se repetindo e ganhando contorno. Sem tentar decidir quais palavras poderiam dar conta dessas constelações, novas obras responderam às primeiras, complementando, aprofundando, expandindo, contestando, contradizendo, reiterando, redefinindo seus sentidos. A exposição foi constituindo assim, esses núcleos se fazendo mais densos, mais sólidos, mais bem delineados e também mais complexos, menos unidimensionais.

Na busca por uma linguagem para delinear os campos de força que, imaginamos, serão criados pelo encontro dessas obras, propusemos alguns objetos, junto com suas histórias, como enunciados. Um meteorito e um fóssil que enfrentaram de maneiras diferentes o mesmo incêndio; um sino que soou em momentos diversos de uma história que se repete; as imagens do homem mais retratado de um tempo em que quase ninguém era retratado; os bordados que outro homem não teria feito se não fosse às escondidas; cartas que, para chegar a uma criança, tiveram que atravessar as grades da cadeia e os olhos da censura... Esses enunciados pontuam a exposição, sugerem o tom no qual podem vibrar as obras ao seu redor, aglutinando e tornando tangíveis as preocupações e as reflexões da curadoria. Funcionam, nesse sentido, como o diapasão que ajuda a afinar um instrumento musical, ou a começar um canto. Na curadoria de uma exposição também é almejado algo parecido com uma afinação, um ajuste não isento de erros, acidentes e (como dizíamos) desvios, que o tempo tão expandido da 34ª Bienal nos permite.

Funcionando como o primeiro desses enunciados, mais que como um tema, o título da 34ª Bienal de São Paulo, Faz escuro mas eu canto, é um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, publicado em 1965. Por meio desse verso, a 34ª Bienal reconhece a urgência dos problemas que desafiam a vida no mundo atual, e que a pandemia tornou ainda mais urgentes e dramáticos, enquanto reivindica a necessidade da arte como um campo de encontro, resistência, ruptura e transformação. Desde que encontramos esse verso, o breu que nos cerca foi se adensando: dos incêndios na Amazônia que escureceram o dia em São Paulo aos lutos e reclusões gerados pela pandemia, além das decorrentes crises políticas, sociais e econômicas. Ao longo desses meses de trabalho, rodeados por colapsos de toda ordem, nos perguntamos uma e outra vez quais formas de arte e de presença no mundo são agora possíveis e necessárias. Em tempos escuros, quais são os cantos que não podemos seguir sem ouvir?

Ficha técnica do audioguia inclusivo

Locução: Marília Gabriela, Adriana Couto, Sara Bentes, André Trigueiro

Desenho de som e trilha sonora: Fernando Cespedes

Consultoria de acessibilidade: Mais Diferenças

Distribuição: Musea

Realização: Fundação Bienal de São Paulo e Goethe-Institut


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