Rio de Janeiro
CCBB RJ
30 de abril de 2025 a 30 de junho de 2025
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Banco do Brasil apresenta e patrocina a exposição Indomináveis Presenças que reúne 114 obras de diversas linguagens, produzidas por uma coletividade de 16 artistas, que materializam a transformação do olhar colonial para as artes e para urgente necessidade de reparação e reconhecimento.
A mostra é um convite a experimentar formas de exorbitar o mundo a partir de perspectivas negras, indígenas e LGBTQIAPN+ comprometidas com a emancipação da imaginação e com o estado de celebração.
Ao realizar esse projeto, o Centro Cultural Banco do Brasil reafirma seu compromisso com a pluralidade cultural e com o fomento a projetos que além de celebrar a arte, proporcionam ao público uma imersão que favorece reflexões sobre identidade, diversidade, inclusão, resgate e valorização de histórias e tradições de um legado ancestral.
Centro Cultural Banco do Brasil
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As poéticas contemporâneas das artes visuais brasileiras criadas por corpas dissidentes são afloramentos que brotam da vivência da dor, que reuniu milhares de corpos-culturas pela sobrevivência e re-existência. Seus imaginários celebram a pluralidade que emana das comunidades negra, indígena e queer, suas corporeidades, territorialidades, afetos e símbolos.
Se ontem o quilombo era tecnologia ancestral de fuga, hoje transmutou-se em tecnologia afrofuturista de re-conhecimento, co-criação e estratégia. Se a aldeia é célula ancestral-originária de comunidade, hoje ensina sobre o futuro.
O processo curatorial desta mostra catalisa uma expansão de imaginários na direção de uma nova ecologia simbólica decolonial sobre a cultura. Escancara uma diversidade criativa, estética, técnica e poética de artistas de diferentes gerações. Rastreia o que há de incontornável nas múltiplas identidades expressões da arte brasileira.
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"Minha pele é linguagem
E a leitura é toda sua, ôh
...
Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade
Somos nós a alegria da cidade
Apesar de tanto não, tanta marginalidade
Somos nós a alegria da cidade..."
Alegria da Cidade - Lazzo Matumbi e Virgínia Rodrigues
Indomináveis Presenças é a presentificação de imaginários contra-coloniais materializados em obras de diversas linguagens. Idealizada pelo quilombo digital AfrontArt, a exposição reafirma o compromisso em fomentar a emergência e a permanência de perspectivas negras e indígenas na cena das artes visuais brasileiras da contemporaneidade.
O processo curatorial compartilhado demandou de nós a capacidade de sonhar durante o imprevisto. Abraçamos o desafio de nos tornarmos íntimas de nossas divergências transformando-as em fricções criativas, adubamos a teimosia e insistimos tanto na alegria da realização do impossível, quanto na recusa em servir ao mero entretenimento.
Abandonamos nomes, etiquetas identitárias, e aderimos a energia da transmutação.
Nossas pesquisas são o fundamento do que apresentamos na exposição, mas precisamos ressaltar a importância de um processo curatorial moldado e refinado a cada novo encontro com artistas. Foi conversando que encontramos a imagem de uma floresta que atravessa o tempo, erguida por gentes de pele escura.
A coletividade de artistas presentes convoca-nos a visitar e experimentar formas de exorbitar o mundo desde perspectivas negras, indígenas e LGBTQIAPN+ comprometidas com a emancipação da imaginação e com o estado de celebração. A recusa do mundo em nos acolher enquanto humanes aparece menos como um problema a ser reparado, e mais como uma possibilidade de entrar em relação com as muitas e antigas formas pelas quais existimos: aquilombadas e comprometidas em refecundar a vida apesar da violência. Das formas exorbitantes, desdobram-se narrativas fantásticas, retornos abstratos em direção à matéria, contestações monumentais, sobreposição de memórias, fabulação de futuros ancestrais.
Percebermos os ruídos das imagens se erguendo em festa depois das batalhas vencidas, e nos tornamos capazes de escutar as promessas sendo sussurradas entre afagos, esse é apenas um meio-começo de caminho. Planejamos um resultado, navegar a espiral do tempo e assentar, aqui e agora, um mundo que vem e que já está aqui. A rota percorrida nos fez incorporar vestígios e insistir na recusa daquilo que se espera de artistas dissidentes e de suas comunidades. Desenhamos outras rotas no mapa das artes visuais brasileiras. A arte só acontece porque é vivida enquanto liberamos nossas imaginações do projeto colonial e nos tornamos incapturáveis.
Eis as imagens: em abundância e enfeitiçadas. Desejamos que elas se espalhem e povoem cânticos, imaginações, sonhos, trabalhos escolares e conversas madrugais, pois elas são o vestígio e a evidência de que a vida segue acontecendo porque é encantada.
Nada...nada existe além do milagre e da persistência.
Luana Kaiodè
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Subsistência Andrógina
"...
Não, não vou calar, não vou correr
Nem me sujeitar para te obedecer
Não ouse atravessar, não irá me conter
Não poderá me parar, quem dirá me deter
..."
Asfalto Selvagem - Tássia Reis - 2024
Assim como se deu a construção dessa diversa e expansiva curadoria, vamos por atos voluntários:
Ato I - Subsistência
Em Estudos Sociais, minha matéria favorita na escola primária, aprendi que para seguir viva aqui no Ayiê era imprescindível ter uma vida/ser uma humana subsistente.
Subsistência - minha segunda palavra favorita.
*substantivo feminino
1. estado das pessoas ou coisas que subsistem; que se mantêm; existência;
permanência.
2. conjunto das coisas essenciais à manutenção da vida; sustento.
Como eu menina negra retinta e periférica seria subsistente nesse mundo cão?
Aos 9 anos, eu encontrei/encarei o meu "primeiro real" problema:
Existir.
Ali no presente, não hoje tão passado, compreendi com as ferramentas que tinha, que respirar não era meu real problema enquanto humana, que desde os 3 anos precisava nadar 3x na semana para seguir aqui viva. Mas sim, que meu BO legítimo era/é ser 'Eu'.
Ter total compreensão de si mesmo é um privilégio nesse mundo onde tudo e todes tentam te confundir e/ou dizer quem você é e deve ser. Mas também é desesperador se dar conta que não há espaço/forma/fórmula para permanecer.
Aquariana que sou, vivo de/e no futuro constante.
Imagine você como é, para mim e meus semelhantes, (sobre)viver em/a uma sociedade que insiste em determinar que o presente tome apenas o passado como referência do que deve ser não só agora, mas também do que virá a ser futuro. No entanto, o grande babado da vida/existência para os futuristas natos, como eu, é captar que aquilo que nos projetam como presente-futuro é o pretérito imperfeito.
Ato II - A Entidade
Figurada como uma grande moita anticolonial, Indomináveis Presenças chega criando raízes fortes e fundas, que aos poucos vão gerando seus legados/brotos em seu próprio eixo como um fractal, que vai se expandindo e tocando tudo como a luz do Sol. Camada por camada dominando todo o entorno com sua força florestal, como os guetos, assentamentos, favelas, morros, quebradas e comunidades.
Espadas de Ogum e Osossi que unidas brotam no centro dessa expografia, representam artistas/quilombos/aldeias/territórios/comunidades/humanos/profissionais que compõem a Indomináveis Presenças, que por sua vez, nascida/rebento da fecundação de Babà Oculto com Yà Mistério, manifesta-se como uma entidade viva atemporal, andrógina e subsistente, que ocupa/invade/assenta neste presente o que já é futuro.
Se assimilarmos que enquanto indivíduos/humanos somos um presente/benção/dádiva, e que de fato aqui estamos para semear/fincar um futuro de forma verdadeira, constante, perene, sustentável, subsistente ... Nos daríamos verdadeiramente a importância/valor/relevância que nos cabe por em prática.
Pois aqui estamos para receber a graça, o agrado, a oferta, a colheita, a fortuna, o golpe de sorte e consumar a bênção no agora. Para que assim possamos de fato utilizar o nosso benefício/boa-venturança da e na tal avançada (pós) contemporaneidade.
Façamos então tudo aquilo que já está nos sendo dito/anunciado/proclamado, tudo que já está evidente, posto e provado pelas ciências/culturas/fatos.
Cumpramos e edifiquemos aqui e agora tudo o que temos, com tudo que somos.
Efetuemos com integridade o conhecimento que já foi depositado, pesquisado, escrito até então.
Aceitemos as oferendas nesta ocasião com a completude que elas nos propõem.
Deixemos as cortinas de antigos apaixonamentos coloniais ruírem, para que possamos receber o frescor dos diversos e bons ventos que sopram em múltiplas direções. E que, junto às águas frescas que seguem saltando inodoras das nascentes a caminho do mar, possamos nos banhar e nos hidratar, assim como em suas margens nutrem as matas. Que aqui representadas pelas espadas de Ogum e Osossi, não só cumprem suas funções de beleza/estética e suporte para as obras, mas também como armas, defesas, imunidade e fundamento.
A Indomináveis Presenças é como uma deusa guerreira Yorubá, sempre se apresenta com seus trajes e adornos completos. E nessa celebração contestatória se manifesta/expressa com suas ferramentas, armar, armaduras a postos, assim como uma realeza que não traz de forma arrogante/provocativa sua coroa nas mãos, mas sim na cabeça, para que não seja necessário ser anunciado de quem se trata e porque ali se encontra.
Ato III - Andrógina
Aos 6 anos, ao entrar numa loja de departamentos em Salvador-Ba, vi na sessão normativa/binária destinada às meninas um conjunto do personagem Sonic - personagem normativamente destinado/canalizado para meninos - camisa, bermuda e top, era o tipo de roupa que eu sonhava.
Corri até a arara, encontrei um do meu tamanho e, abraçada com aquele sonho em forma de vestes, eu disse com todos as minhas corpas: "Mãe, compra pra mim, por favor, eu não vou conseguir viver sem ele".
A minha intensa súplica sobre aquela simples roupa era, na real, sobre o fato de que finalmente colocaram na seção para as tais meninas um look de um personagem para os tais meninos.
Eu nasci rebelde, anti-regras, amo um "e”, evito ao máximo os "ous".
Sempre tive um olhar para o universo destinado ao masculino como uma possibilidade de, enquanto garota cis, ser diferente das demais meninas e poder viver a minha missão/essência astral como aquariana ao máximo aqui no Ayiê. Que consiste em ser estranha, diferente, inusitada, alien, provocativa, fora-da-caixa.
E naquele dia, após meu expresso pedido, minha mãe perguntou:
- Mas por que você quer tanto esse conjunto? Você nem gosta do Sonic.
E eu disse:
- Porque essa roupa é andrógina.
Minha mãe espantada questionou minha sabedoria de então:
- E você lá sabe o que é andrógina, menina?
E firme e plana do que/quem sou, informei a ela:
- Oxe! Andrógina sou eu, mainha!
E naquele dia, eu compreendi que eu era mais do que uma humana andrógina...
Eu era/sou uma Indominável Presença.
Andrógina - minha primeira palavra favorita
*adjetivo substantivo feminino que ou aquela que apresenta características, traços ou comportamento imprecisos, entre masculino e feminino, ou que tem, notavelmente, características do sexo oposto.
Cintia Guedes
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Feitiço, indeterminação e desobediência
Quando embarquei no projeto que origina a exposição Indomináveis Presenças, em outubro de 2023, haviam importantes contornos estabelecidos. O convite foi aceito porque era para celebrar a vida negra, indígena e dissidente das normativas de gênero e sexualidade. Ao longo de meses a exposição perdeu um nome, cresceu e ganhou um corpo no caminho de sua feitura. As intenções iniciais foram desafiadas a cada conversa entre curadoras, artistas, produtoras e equipe técnica. A exposição ergueu-se como floresta a partir de um trabalho curatorial de reconhecimento do que se apresentava como força de reencantamento do mundo; tratava-se de criar espaço e condições para sustentar esse acontecimento.
Tudo que queríamos era que a semeadura (nos) vingasse.
Afrontosa dos modos hegemônicos pelos quais habitamos o mundo, Indomináveis Presenças apresenta artistas capazes de nos entregar sensações semelhantes às dos sonhos que nos surpreendem quando acordamos — aquele desconforto excitante de sermos atravessadas por algo que ainda não entendemos completamente, a vulnerabilidade que acessamos quando nos tornamos capazes de reconhecer, nesses sonhos, os ecos do que ainda está por vir.
A exposição colabora com o trabalho que tem sido feito por artistas racializadas ao redor do mundo para reflorestar o imaginário coletivo. Está engajada também no trabalho de defender quem morreu e quem ainda não nasceu, e por isso se abre a uma pluralidade de perspectivas, impossíveis de indexar, mas convergentes pelo fato de não estarem conciliadas com as dinâmicas exploratórias dos corpos racializados e de seus territórios pela cisheteronorma. Estudamos as confluências narrativas e as pluralidades de linguagens manifestadas pelas artistas curadas, no desejo de que Indomináveis Presenças possa operar a re/decomposição do imaginário colonial.
O feitiço da re/decomposição só pode acontecer na fricção das divergências e na complexidade do que, à primeira vista, pode parecer mera contradição, mas é a condição da vida racializada e dissidente: existir entre-mundos. Na nossa floresta indominável, os lugares de cultivo da saúde e da espiritualidade são indistinguíveis, assim como as imagens do amor e da emancipação caminham lado a lado, na ficção dos arquivos, nas performances de intimidade radical entre as matérias do mundo, nas indisciplinas monumentais, na costura de vestígios que presentifica o passado e, sobretudo, no abandono da iconografia da violência para a transmutação de novas formas.
Curamos no conflito dos afetos profundos, exploramos a ideia de exposição como estudo dos modos pelos quais nossas produções seguem excedendo os modelos cis-hetero e brancos, engendrando forças incapturáveis, capazes de depositar no futuro porções de indeterminação e desobediência, porque presenças indomináveis sabem fazer morada no desconhecido.
Por fim, é importante ressaltar que os textos generosamente escritos e cedidos por Abigail Campos Leal, Correnteza Braba, Jota Mombaça e Jup do Bairro, reunidos neste catálogo sob a forma de ensaios, poesias e ficção, não operam dispositivos da crítica em arte, mas sim atravessam a exposição de maneira transversal, abrindo portais e possibilidades de mediação dos mundos presentes em Indomináveis Presenças.
Ventura Profana
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Ventura Profana - Obra Sonora Original
Ventura Profana, artista visual, missionária e evangelista, emerge como uma das vozes mais provocativas e críticas da arte contemporânea brasileira. Nascida na Bahia, Ventura desenvolveu uma prática artística que desafia as normas religiosas e culturais, abordando temas como fé, dissidência e o impacto das igrejas neo-pentecostais no Brasil e em outras regiões. Seu trabalho atravessa linguagens, incluindo música, poesia e performance, criando uma interseção entre espiritualidade e subversão. Sua trajetória é marcada por uma profunda investigação da relação entre religiosidade e controle social, usando sua experiência pessoal como ponto de partida para criticar a doutrina religiosa e propor um novo entendimento de fé. Exibida em instituições renomadas como o Sesc Pompéia, o Museu de Arte da Pampulha e o Centre d’Art Contemporain Genève, Ventura Profana não apenas redefine as fronteiras da arte, mas questiona as estruturas de poder que ditam normas de conduta, sexualidade e crença.
Em 2020, Ventura lançou o álbum Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor, no qual explora de forma contundente as nuances do fanatismo e da repressão religiosa. Sua obra é marcada por um forte teor político e estético, que ressignifica a narrativa cristã tradicional através de uma perspectiva queer e afro-brasileira. Performances como Cântico dos Cânticos, que foi premiada no Prêmio de Artes Cênicas Negras Leda Maria Martins, revelam sua habilidade de fundir erotismo e crítica social, apontando para a hipocrisia e o conservadorismo das instituições religiosas. Ventura Profana não se limita a desconstruir dogmas; ela cria um novo território de resistência, onde a fé se torna uma ferramenta de empoderamento e afirmação para corpos dissidentes.
A obra sonora de Ventura Profana representa um manifesto de resistência e liberação espiritual. Por meio da música, Ventura desafia a imposição de uma fé que condiciona o corpo, controlando o desejo e a expressão individual. Ela utiliza a sonoridade para explorar o potencial da espiritualidade dissidente, subvertendo a doutrina cristã tradicional e transformando-a em um espaço de acolhimento e força para corpos historicamente marginalizados. Esse tipo de criação sonora transcende o papel de uma obra de arte; Ventura ressignifica a igreja e o culto, propondo uma nova configuração de comunidade e fé, onde os dogmas são abolidos e a liberdade é exaltada.
A repetição de sons e ritmos na obra sonora, típica do trabalho de Ventura, lembra o caráter hipnótico dos cânticos religiosos, mas subverte seu propósito. Em vez de reforçar a submissão a um poder superior, Ventura Profana faz uso desses elementos para invocar o empoderamento pessoal e comunitário. O som torna-se um instrumento de exorcismo dos preconceitos e da opressão que a igreja institucionalizada frequentemente impõe, especialmente sobre corpos dissidentes e LGBTQIA+. A pulsação rítmica dos sons e a intensidade das palavras criam um ambiente de resistência, quase um ritual de descolonização da espiritualidade, no qual a artista ecoa como uma força libertadora.
abigail Campos Leal
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Abigail Campos Leal - Indomináveis Presenças
Abigail Campos Leal é uma artista cuja obra transcende formas convencionais, utilizando elementos poéticos e performativos para explorar questões de identidade, prazer e memória ancestral. Com um trabalho enraizado na experiência de ser uma mulher negra, Abigail investiga o prazer como um caminho de cura e de resistência contra a violência histórica e estrutural. Em suas obras, o prazer se desdobra em uma dimensão política, funcionando como uma forma de autossustentação e reapropriação de narrativas. Ao envolver o público em um jogo de sensações e afetos, a artista evoca ancestralidades e resgata símbolos de bem-estar e autoafirmação, tornando o prazer uma prática de reconstituição e sobrevivência. Suas criações, que frequentemente incorporam elementos textuais e sensoriais, revelam uma poética visceral, rica em camadas simbólicas e marcada por um profundo sentido de existência e resistência.
A obra consiste nos poemas abaixo fixadas sobre um tecido colorido que está preso na parede do espaço expositivo e convidam à reflexão.
“o feitiço é também uma forma de atravessar os tempos e geografias.”
“estudo como vingança de todo amor que não vivi
de todo prazer que desejei chorando só
de toda beleza que sonhava sem nenhuma esperança.
Bum! eu to aqui e eu sei que você me deseja”
A obra Indomináveis Presenças se constitui como um manifesto poético e sensorial, onde Abigail Campos Leal aborda o prazer e a presença negra como atos de resistência e ocupação. O verso “o feitiço é também uma forma de atravessar os tempos e geografias” sugere que o prazer, para a artista, é uma experiência de transcendência, uma maneira de romper as barreiras impostas pela história colonial e de se reconectar com suas ancestralidades. A ideia do "feitiço" aqui é evocativa de práticas espirituais afro-diaspóricas, onde o corpo e o espírito se cruzam em rituais que desafiam o tempo e o espaço. É uma reafirmação de que a presença negra é mágica, potente, e capaz de subverter as narrativas que tentaram apagá-la.
No segundo trecho, a artista articula o prazer como uma forma de vingança simbólica — uma vingança contra as oportunidades negadas, os prazeres contidos e as belezas idealizadas e inatingíveis. A frase "estudo como vingança" subverte o conhecimento acadêmico e normativo, transformando o ato de aprender em um processo de cura e afirmação. Este estudo do prazer torna-se uma reconquista da própria história, um reequilíbrio das vivências interrompidas pelo racismo e pela misoginia. Abigail transforma o prazer em um espaço de resistência, onde as violências que tentaram silenciar seus desejos e sonhos são convertidas em impulsos de criação e expansão. A expressão “Bum! eu to aqui e eu sei que você me deseja” é ao mesmo tempo, um grito de afirmação e um desafio. Este "bum" carrega uma energia explosiva, confrontando o público com a força inegável da presença negra e dissidente.
Correnteza Braba
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Correnteza Braba - Para as memórias não descolarem da matéria
A obra de Correnteza Braba está profundamente ancorada na ancestralidade e nas complexas relações entre memória, território e resistência. Seu trabalho aborda a espiritualidade como uma forma de conexão com as raízes e uma afirmação da identidade frente às forças que ameaçam apagar a história e os saberes originários. Correnteza utiliza elementos poéticos e rituais em suas criações, evocando a presença dos que vieram antes e dos que virão. Em suas obras, a artista posiciona-se como uma guarda das memórias coletivas e individuais, fazendo uso da palavra como instrumento de plantio de sonhos e preservação de legados. Sua poética transcende o tempo, estabelecendo uma ponte entre o passado, o presente e o futuro, e ressignificando o papel da arte como veículo de resistência e regeneração.
A obra consiste nos poemas abaixo fixados sobre um tecido colorido que está preso na parede do espaço expositivo
“Escrevo tuas memórias no tempo presente, sei que tu és o agora, ancestralidade com nome, cor e território.”
“Tu que retorna a vida em tantas cabeças, em tantas terras, em tantos tempos, me ensina que o sol no norte é forte e que posso ser mais forte que o fim.”
Para as Memórias Não Descolarem da Matéria se configura como uma declaração de devoção à ancestralidade e à resiliência das memórias coletivas que compõem a identidade da artista. A frase “Escrevo tuas memórias no tempo presente” revela uma prática de resistência ao apagar do passado; para Correnteza Braba, o presente não é apenas uma continuidade do passado, mas um espaço ativo de reescrita e afirmação das histórias que desafiam o esquecimento. A ancestralidade aqui se transforma em presença viva e concreta, com “nome, cor e território”, explicitando a importância de situar as identidades em contextos culturais e geográficos específicos. A artista reconhece, assim, a ancestralidade como uma força atual, moldando o agora e afirmando sua existência em cada detalhe do mundo contemporâneo.
No verso “Tu que retorna a vida em tantas cabeças, em tantas terras, em tantos tempos,” Correnteza Braba evoca a circularidade do tempo e a permanência dos ensinamentos ancestrais. Esse retorno, essa repetição de vidas em “tantas cabeças” e “tantas terras,” aponta para uma continuidade inquebrável, onde as memórias e os saberes se adaptam e resistem ao longo das gerações. O tempo deixa de ser linear, tornando-se um ciclo em que o passado e o futuro se entrelaçam no presente. Este processo de retorno é também um processo de cura, uma maneira de redescobrir a própria força em meio às adversidades.
A obra finaliza com uma afirmação de potência: “me ensina que o sol no norte é forte e que posso ser mais forte que o fim.” Esta linha encapsula a esperança e a força que Correnteza Braba encontra na ancestralidade, uma força que supera a destruição e transcende o fim."
Jota Mombaça
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Jota Mombaça - Presa no movimento (na onda)
Jota Mombaça é uma artista interdisciplinar que explora os limites do corpo, da identidade e da subjetividade. Sua obra se desdobra em um território complexo, onde questões de gênero, raça e ancestralidade se encontram com temas de violência, crise e sobrevivência. Com uma trajetória que abarca poesia, performance e instalações, Jota investiga as possibilidades de um corpo que se expande e desafia fronteiras normativas, tanto no plano físico quanto no simbólico. Sua arte é profundamente marcada pela experiência pessoal e pela política, promovendo uma reflexão contínua sobre o que significa existir em um mundo que frequentemente tenta categorizar e silenciar corpos marginalizados.
A partir de uma abordagem crítica e emocional, Mombaça questiona as bases de pertencimento, propriedade e separação entre o eu e o outro, provocando o espectador a repensar noções de identidade e relação.
A obra consiste nos poemas abaixo fixadas sobre um tecido colorido que está preso na parede do espaço expositivo.
"Estamos apenas aqui. Isso é tudo que há pra saber"
"Sinto que estou acessando uma nova vida"
Presa no Movimento (na Onda), de Jota Mombaça, é um poema que se manifesta como uma meditação sobre a transitoriedade e a fluidez da identidade. O verso "Estamos apenas aqui. Isso é tudo que há pra saber" sugere uma aceitação radical do presente, um estado de ser que transcende a necessidade de categorização e de posse. Nesse contexto, o "estar" se torna uma afirmação de existência que rejeita a necessidade de estabilidade e se entrega à imersão no momento. Mombaça parece desafiar a noção de individualidade como algo fixo e propriedade de si, questionando a ideia de que devemos possuir um "eu" definido. Ao mesmo tempo, esse "estar" carrega uma ambiguidade: ele oferece conforto, mas também uma incerteza inquietante sobre o sentido de permanência.
A frase “Sinto que estou acessando uma nova vida” aponta para um processo de transformação contínua, onde a identidade se encontra em fluxo constante. Esse acesso a uma "nova vida" representa não apenas uma mudança pessoal, mas também um afastamento das amarras de uma identidade estática. Ao abdicar do controle e permitir que a própria essência seja moldada pelas forças externas — como uma "onda" que carrega e redefine tudo ao seu redor — a artista propõe uma percepção de si que é simultaneamente vulnerável e poderosa. Mombaça explora a ideia de uma existência que não é fundamentada em fronteiras fixas, mas que se adapta e se dissolve em uma relação interdependente com o todo.
Jup do Bairro
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Jup do Bairro - Eu já estive aqui
Jup do Bairro é uma artista multifacetada, cuja atuação transita entre música, performance e ativismo, revelando-se uma figura fundamental na cena contemporânea brasileira. Reconhecida por sua expressividade e pelo compromisso com as questões de gênero, raça e dissidência, Jup emerge como uma voz potente de resistência e transformação. Através de suas obras e performances, a artista desafia convenções e explora os limites do corpo como território de identidade, luta e criação. Sua carreira é marcada pela inquietude e pela experimentação, ampliando o alcance da arte queer e rompendo com as noções tradicionais de pertencimento e normatividade. Jup utiliza a arte como um meio para reimaginar o mundo, promovendo uma constante reflexão sobre a marginalização e a liberdade de existir plenamente, sem restrições impostas pela sociedade.
A obra consiste nos poemas abaixo fixadas sobre um tecido colorido que está preso na parede do espaço expositivo que convidam à reflexão.
“Se não fosse o sonho, eu não voltava.”
“Eu já estive aqui, lembro de você. Lembro de uma liberdade aguardada, um grito contido. Lembro seu voo, um símbolo de renascimento.”
Eu Já Estive Aqui é um poema que condensa o espírito da luta, da memória e da libertação em poucas palavras, mas com intensidade visceral. A frase “Se não fosse o sonho, eu não voltava” revela um desejo de retorno motivado não pela imposição, mas pelo impulso interno de sonhar com a possibilidade de um renascimento. O sonho aqui torna-se um veículo de transformação, um lugar de resistência em que o ato de imaginar algo além da realidade presente permite um reencontro com o passado e a possibilidade de superação das adversidades. Para Jup do Bairro, o sonho é mais do que um escape; ele é uma ferramenta política e uma manifestação de esperança, um modo de reviver aquilo que foi perdido e de reescrever a própria história, não sob o peso da dor, mas sob a força de uma nova possibilidade de existência.
A segunda parte do poema, "Eu já estive aqui, lembro de você. Lembro de uma liberdade aguardada, um grito contido," sugere um reencontro com experiências passadas, com ecos de uma luta contínua pela liberdade. Essa liberdade "aguardada" implica uma espera que carrega em si a promessa de algo maior, um rompimento com os silêncios impostos. O "grito contido" é uma imagem poderosa que fala das barreiras e das repressões enfrentadas, mas também da iminência de uma explosão, de uma expressão que se recusará a ser silenciada. Esse grito latente simboliza não apenas a opressão, mas a força de quem sobrevive, de quem acumula resistência em seu interior, pronto para reivindicar sua existência com intensidade.
Ao final, o "voo, um símbolo de renascimento" encapsula a trajetória de libertação e transcendência. O voo se torna um ícone de emancipação, de rompimento com o que restringe. Na obra de Jup, o renascimento não é um retorno ao mesmo ponto; é uma reformulação do eu, uma reconfiguração da identidade que abraça as dores e as conquistas, permitindo um novo início, agora com a memória e o aprendizado adquiridos ao longo do caminho. Essa obra-poema opera como uma autodeclaração de resiliência e reinvenção, em que a artista se afirma enquanto corpo e voz que resistem e persistem.
Mayara Ferrão
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O Beijo 2, 2024
Inteligência Artificial,
Impressão Fine Art
75 x 54cm
Mayara Ferrão - O Beijo 2
Mayara Ferrão, nascida em Salvador, Bahia, é uma artista visual e diretora criativa com formação em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sua prática artística abrange múltiplas linguagens, incluindo fotografia, ilustração, pintura e direção criativa. O trabalho de Mayara é marcado pela exploração de temas como ancestralidade, cultura afro-brasileira, questões de gênero, raça e classe. Com uma abordagem visual que mistura o tradicional e o contemporâneo, Mayara utiliza tecnologias de imagem e vídeo para dar visibilidade às narrativas de corpos negros, indígenas e dissidentes, enraizadas em sua vivência como mulher negra soteropolitana.
Ferrão já dirigiu videoclipes, curtas e médias-metragens, tendo suas obras exibidas em festivais de cinema no Brasil e no exterior. Além disso, colabora com capas de livros e projetos que celebram vozes feministas negras, trazendo referências de autoras como Lélia Gonzalez e Saidiya Hartman.
No canto inferior direito da imagem, duas mulheres negras, frente a frente, compartilham um abraço íntimo e caloroso, em que seus rostos se aproximam em um beijo discreto, cheio de ternura e afeto. Elas vestem roupas brancas tradicionais e cobrem a cabeça com turbantes, elementos que carregam uma riqueza simbólica: remetem ao Candomblé e à tradição religiosa e cultural afro-brasileira. Ao fundo, observa-se uma casa modesta, de paredes brancas desgastadas, com uma janela fechada, outra sem venezianas e uma porta escura aberta. A casa, simples em sua estrutura, parece um testemunho silencioso da cena afetiva que ocorre à sua frente, capturando uma atmosfera que é ao mesmo tempo íntima e universal. Acima da casa, as folhas de grandes árvores criam uma copa espessa que se expande até o topo da imagem, como um teto natural. Essa vegetação densa sugere o isolamento e a proteção típicos de quintais ancestrais, onde a espiritualidade e o cotidiano se fundem.
À esquerda das mulheres, um galo preto caminha ao lado de um braseiro, do qual se ergue uma coluna fina de fumaça branca. A presença do galo é emblemática: na simbologia das religiões afro-brasileiras, ele representa uma ponte entre o sagrado e o profano, servindo muitas vezes como um mediador entre o mundo físico e o espiritual. A fumaça, por sua vez, parece evocar uma conexão com os ancestrais, um elo que reafirma a permanência das tradições em um cenário que exala espiritualidade e resistência.
O Beijo 2 se insere na obra de Mayara Ferrão como uma meditação poética sobre o afeto e o pertencimento, elevando a imagem de um beijo entre duas mulheres a um símbolo complexo e multifacetado. Ferrão cria uma composição que resgata a intimidade de espaços de memória e vivência negra, trazendo à tona a importância de corpos negros em contextos de afeto e espiritualidade, com um olhar que desafia a objetificação e a marginalização histórica que marcaram a representação de mulheres negras nas artes visuais.
Helen Salomão
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Carta de Recomendação, 2023
Escrita manual em plástico cristal mica transparente, autorretrato impresso em tecido chiffon e parte de uma colcha Patchwork.
130 X 90 cm
Helen Salomão - Carta de Recomendação
Helen Salomão, nascida em Salvador em 1994, é uma artista multidisciplinar cuja prática abrange fotografia, videoarte, escrita e instalações. Seu trabalho é marcado pela investigação de temas como identidade, corpo, espiritualidade e ancestralidade, que se entrelaçam para criar uma poética visual de cura e resistência. A artista explora frequentemente o corpo como território de afirmação política e espaço de memória, utilizando suas obras para questionar e subverter estruturas coloniais e patriarcais que tentam limitar a existência de corpos dissidentes.
A obra Carta de Recomendação de Helen Salomão é uma composição visual multifacetada que mescla diferentes materiais e linguagens para transmitir uma mensagem pessoal e política. Ela mede 130 centímetros de altura por 90 centímetros de largura e é composta por uma série de camadas que se sobrepõem, criando uma imagem rica em texturas e significados. A peça utiliza como base um tecido chiffon e parte de uma colcha de retalhos onde está impresso o retrato da artista. Sobre esse retrato há um plástico de cristal mica transparente, que serve de suporte para uma escrita manual em vermelho vibrante que diz o seguinte:
Carta de Recomendação - Para quem possa interessar, Helen Salomão é uma artista multidisciplinar. Ela utiliza diferentes linguagens artísticas para construir suas obras, tais como fotografia, escrita, videoarte e instalações. Suas obras expressam suas vivências e inquietações, como sua conexão espiritual e ancestral, a nutrição para o corpo e a alma, a valorização da natureza que somos, a importância de estar consciente e da construção de memórias, o corpo como espaço político e o afeto como um potencializador da cura.
Sob esse texto, é possível visualizar a fotografia, que mostra o rosto da própria artista em um autorretrato introspectivo. Nessa imagem, Helen apoia o queixo na mão esquerda, com o olhar pensativo e contemplativo, como se estivesse refletindo sobre cada palavra. O tecido chiffon, fino e translúcido, permite que a imagem de Helen se mescle com as letras, reforçando uma conexão entre corpo e discurso. Abaixo do chiffon, no plano de fundo da obra, há uma colcha de retalhos em estilo patchwork, com diferentes estampas e texturas que evocam memórias e elementos de tradição popular brasileira.
Em Carta de Recomendação, Helen Salomão utiliza a ironia de se definir através de um formato tradicionalmente associado à validação externa — uma carta de recomendação, geralmente escrita por outra pessoa para atestar as qualidades e capacidades de alguém. Ao escrever sua própria recomendação, a artista subverte a lógica de dependência de reconhecimento alheio, reivindicando para si o direito de narrar a própria trajetória e qualidades. Essa escolha expõe uma crítica sutil às estruturas que demandam a legitimidade de vozes e corpos marginalizados através da aprovação de terceiros, especialmente em um mundo artístico que muitas vezes exclui ou silencia artistas dissidentes. Ao se apropriar desse formato, Helen inverte o jogo, declarando-se autora de sua própria história, dando voz ao seu eu artístico e espiritual sem intermediações, e desafiando o sistema que historicamente condiciona o valor do artista à legitimação institucional.
Gê Viana
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Tudo que há de bonito entre nós, 2024
Colagem digital sobre Alex Agbaglo I Keïta,
Impressa em Fine Art
100 X 80 cm
Gê Viana - Tudo que há de bonito entre nós
Gê Viana é uma artista visual em formação pela Universidade Federal do Maranhão, cujas obras se movem entre o quintal de casa e as ruas. Seu trabalho, profundamente enraizado nas práticas de colagem, tanto digital quanto manual, explora temas de memória, ancestralidade e resistência afro-indígena. Utilizando imagens de arquivo e narrativas orais, Gê Viana confronta as tradições hegemônicas da cultura colonizadora e revisita histórias de seu povo Anapuru, reinterpretando o cotidiano da diáspora africana e indígena no Maranhão. Sua prática artística é, para além de uma expressão estética, um ato político: ao devolver suas criações para o espaço público, Viana propõe uma formação social e estético-pedagógica que busca dignificar e empoderar as identidades marginalizadas de seu território.
Tudo Que Há de Bonito Entre Nós é uma colagem digital impressa em fine art, com dimensões de 100 x 80 cm, que recontextualiza uma imagem de Alex Agbaglo I Keïta, fotógrafo ganense cuja obra documenta a vida e as tradições culturais do oeste africano. Na composição, duas mulheres negras estão sentadas lado a lado, suas poses elegantes e vestimentas elaboradas conferem-lhes uma aura de realeza e sofisticação. À esquerda, uma delas usa um turbante delicado, blusa rendada e um pano com padrão quadriculado preto e branco que cobre suas pernas. A mulher à direita exibe um traje ornamentado com bordados complexos e um adorno de cabeça. Seus olhares, direcionados para o espectador, expressam uma mistura de serenidade e força.
Ao fundo, a imagem é interceptada por uma grande área vermelha em formato triangular, que se destaca com intensidade vibrante em contraste com os tons suaves e neutros da fotografia original. Esse elemento vermelho, inserido digitalmente por Gê Viana, emana do canto superior esquerdo da imagem, criando uma linha angular que direciona o olhar para as duas figuras centrais. No topo direito, um vaso de flores complementa a cena, evocando um ambiente de beleza e harmonia, mas também de resistência e vitalidade. A colagem de Viana mescla assim elementos tradicionais e contemporâneos, explorando texturas e tonalidades que acrescentam novas camadas de interpretação à obra original de Keïta.
A escolha de Gê Viana por recontextualizar a fotografia de Alex Agbaglo I Keïta é em si uma ação carregada de significados. Ao inserir intervenções digitais e elementos simbólicos em uma imagem de arquivo, a artista propõe uma releitura das relações entre o passado e o presente afro-diaspórico. O espaço vermelho triangular que Viana insere na imagem funciona quase como um ato de reivindicação; ele corta a cena original e nos obriga a questionar as ausências e as presenças que compõem a experiência negra e indígena. A cor vermelha, vibrante e disruptiva, pode ser lida como uma metáfora para o sangue derramado, a resistência histórica, ou mesmo como um lembrete da força e da beleza que subsistem em meio à violência e ao apagamento colonial.
Ao se apropriar do retrato e inseri-lo em um contexto visual mais amplo, Viana também destaca a potência da ancestralidade e da memória. As duas figuras femininas, com suas vestimentas e posturas solenes, são emblemas de resistência e orgulho, evocando a realeza africana e indígena que transcende o tempo. A inserção digital não apenas atualiza a imagem, mas também questiona a permanência e a transformação das culturas afro-indígenas em um mundo contemporâneo. O fundo digitalizado e o contraste entre as texturas do antigo e do moderno criam uma estética de descontinuidade que sugere a fragmentação da memória cultural, mas que, ao mesmo tempo, permite que emerjam novas histórias e narrativas.
Uýra Sodoma
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Lama 23, 2017
Fotografia digital de Keila Sankofa,
Impressão Fine Art
66 X 100 cm
Uýra Sodoma - Lama 23
Uýra Sodoma, de 33 anos, é uma artista indígena e travesti, nascida em Manaus e residente no território amazônico. Com formação acadêmica em Biologia e um mestrado em Ecologia da Amazônia, Uýra desenvolve um trabalho artístico que entrelaça ciência, natureza e identidade. Conhecida como a "Árvore que Anda", ela incorpora elementos da floresta em sua prática artística, abordando temas como a preservação ambiental, a diversidade biológica e cultural, e as lutas das comunidades indígenas. Sua obra utiliza o próprio corpo como veículo de expressão, em fotoperformances e instalações que visam contar e recontar histórias de resistência e resiliência. Com um impacto significativo no cenário artístico brasileiro e internacional, Uýra participou de eventos de prestígio, como a 34ª Bienal de São Paulo e a 1ª Bienal das Amazônias, e foi premiada com importantes reconhecimentos, incluindo o Prêmio PIPA e o Prêmio SIM à Igualdade Racial. Suas obras fazem parte de acervos de renomadas instituições nacionais e internacionais, destacando sua relevância crescente na arte contemporânea.
Lama 23 é uma fotografia digital impressa em fine art, medindo 66 x 100 cm, que capta Uýra submersa até o peito em um ambiente aquático de tonalidade verde-azulada, evocando uma lagoa ou um corpo d’água natural. No centro da imagem, o corpo pintado de branco contrasta com o fundo aquático. Uýra aparece com o rosto inclinado para cima, olhos fechados e expressão serena, como se estivesse em um estado de conexão profunda com o ambiente ao seu redor. Sua pele coberta por uma camada de argila ou lama parece entrelaçar-se com a paisagem, reforçando a fusão entre corpo e natureza.
Uýra usa na cabeça um adorno composto por folhas de samambaia e um lenço colorido, o que adiciona um toque vibrante ao conjunto monocromático da figura. O lenço, em tons de vermelho, verde e amarelo, envolve parcialmente as folhas, criando uma espécie de coroa vegetal que pode simbolizar a conexão com o ambiente natural e, ao mesmo tempo, evocar a ancestralidade indígena. No pescoço, folhas pontiagudas estão posicionadas de maneira radial, criando uma moldura ao redor do tronco e formando um efeito visual que se assemelha a um colar ou armadura, o que reforça a ideia de proteção e resistência.
Lama 23 reflete a prática de Uýra Sodoma de explorar o corpo como um território simbiótico com a natureza. Nesta obra, a artista transcende a ideia de corpo humano como entidade separada da paisagem e nos convida a reconsiderar as fronteiras entre o humano e o ambiente natural. Coberta de lama e adornada com elementos vegetais, Uýra assume uma postura de união com a terra e com a água, subvertendo o conceito de corpo como algo puramente físico e individual. A camada de lama não é meramente um adorno; ela representa uma espécie de ritual de incorporação, um ato de reivindicação das origens indígenas e da conexão visceral com a terra. Essa incorporação materializa a relação espiritual e simbólica entre corpo e natureza, destacando como Uýra incorpora os ecossistemas violados e vulneráveis da Amazônia, num grito de alerta sobre a destruição ambiental e a necessidade de proteção dos territórios ancestrais.
Ao cobrir-se de elementos naturais, Uýra desafia também a visão colonial que separa o humano da natureza e categoriza o indígena como o "outro" primitivo. Em Lama 23, ela se apropria do poder simbólico de seus adornos para inverter essa perspectiva, afirmando sua identidade enquanto “Árvore que Anda” e evocando uma entidade que não se limita ao corpo individual, mas representa toda uma coletividade. A obra levanta questões sobre adaptação e resiliência frente às pressões impostas pelo desenvolvimento industrial e pelo desmatamento na Amazônia. A figura de Uýra emerge da água como um ser ancestral e contemporâneo ao mesmo tempo, uma entidade que carrega as memórias da floresta e da diáspora, articulando uma resistência que é ao mesmo tempo poética e política.
Edgar Azevedo
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Sem Título, 2024
Fotografia digital,
Impressão canvas
107 X 80 cm
Edgar Azevedo - Sem Título
Edgar Azevedo é um fotógrafo autodidata de Salvador, Bahia, que se consolidou como uma das vozes mais potentes da nova geração de fotógrafos negros autorais do Brasil. Com um estilo caracterizado pela intensidade emocional e pela exploração de expressões autênticas, Azevedo cria imagens que celebram a diversidade e a complexidade humana, indo além da superfície para captar a essência de seus sujeitos. Indicado pelo British Fashion Council como um dos 50 criativos globais no NEW WAVE: Creatives em 2019 e listado entre os 21 nomes mais influentes do mercado pela Forbes Life em 2023, Edgar já colaborou com marcas renomadas e foi destaque em revistas como Vogue Brasil, Elle Brasil e Glamour. Sua fotografia é um diálogo contínuo entre o real e o imaginário, provocando o público a questionar os padrões estéticos convencionais e a abraçar a beleza da diversidade. Ao focar em retratos que exaltam a singularidade, Azevedo convida os espectadores a desenvolver uma nova perspectiva de empatia e inclusão.
Sem Título é uma fotografia digital de 107 x 80 cm, impressa em canvas, que exibe um retrato em close-up de um homem negro. O rosto do modelo ocupa quase toda a imagem, inclinado levemente para a esquerda e parcialmente submerso na água, que parece aderir à sua pele, criando uma textura visual rica em detalhes. A fotografia é em preto e branco, o que intensifica as nuances e as sombras na pele do modelo, ressaltando sua expressão introspectiva e serena. A textura líquida sobre o rosto e o corpo gera um efeito de fluidez, como se ele estivesse emergindo ou se dissolvendo na água.
Os olhos do modelo são fechados, mas cobertos com uma substância branca, semelhante a argila ou a um mineral, que contrasta com o tom escuro de sua pele e cria uma dualidade entre a introspecção profunda e a vigilância. Essa camada branca nos olhos, de aparência quase surreal, também contribui para o mistério e a tensão visual da obra, ao mesmo tempo que desafia o observador a buscar sentidos mais profundos na imagem. As gotas e pequenas ondulações ao redor do rosto ampliam a sensação de movimento e naturalidade, como se o homem estivesse em um processo de fusão com o ambiente líquido.
A obra transcende o retrato tradicional e se posiciona como uma fonte de introspecção e resistência. Azevedo celebra a beleza e a resiliência do corpo negro, utilizando a simplicidade dos elementos — água, argila e pele — para explorar a força das raízes e a conexão ancestral com a terra. O modelo emerge como uma figura arquetípica, representando não apenas o indivíduo, mas uma coletividade que carrega em si a memória, a luta e a esperança. A utilização da substância branca sobre os olhos pode também ser vista como uma crítica sutil às tentativas de apagamento ou controle sobre corpos racializados, onde a imposição de um “véu” branco sugere a luta entre autoafirmação e a opressão de narrativas externas.
Bernardo Conceição
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Um caminho enfeitado, 2024
Pintura - Acrílica sobre tela
133 X 127 cm
Bernardo Conceição - Um caminho enfeitado
Bernardo Conceição dos Santos, artista multidisciplinar nascido em 1999 na periferia de Itinga, Salvador, utiliza sua arte para explorar temas de espiritualidade, identidade e resistência. Sua obra dialoga com tradições afro-brasileiras, reimaginando elementos culturais em uma estética contemporânea que reflete tanto o universo periférico quanto uma cosmovisão espiritualizada. Com trabalhos exibidos no acervo de arte moderna da Bahia pelo MAM BA e na exposição Raízes do MUNCAB (Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira), Bernardo se destaca por uma abordagem visual que mescla pintura, moda e criatividade, expressa também em sua marca Semprevivo.
Um Caminho Enfeitado é uma pintura acrílica sobre tela, com dimensões de 133 x 127 cm, que captura a força e o misticismo de um retrato estilizado. No centro da composição, o rosto de uma figura negra ocupa o quadro, com traços fortes e expressivos. A pele da figura exibe um gradiente de tons quentes, como dourado e marrom, que criam um jogo de luz e sombra, conferindo profundidade ao rosto. Os olhos são marcantes, brancos e alongados, com dois raios vermelhos que emanam de cada um deles, contrastando dramaticamente sobre o fundo escuro.
Elementos ornamentais em dourado, como estrelas, corações e crescentes de lua, flutuam ao redor da cabeça e do cabelo trançado da figura, criando uma atmosfera de magia e poder. O cabelo da figura é detalhado com pequenas mechas e adornos que enriquecem a composição. À esquerda do quadro, uma forma dourada, reminiscentes de raios solares, se projeta para o alto, iluminando a imagem. Ao redor do pescoço da figura, um colar com contas vermelhas e verdes e um pingente centralizado reforça o simbolismo ancestral da obra.
Nesta obra, Bernardo Conceição constrói uma imagem que transcende o retrato convencional para explorar temas de espiritualidade, misticismo e afirmação identitária. A escolha das cores e dos adornos dourados remete a elementos sagrados, como ícones religiosos e simbolismos afro-diaspóricos, que exaltam a figura negra e sua ancestralidade. Os raios vermelhos que emanam dos olhos podem simbolizar tanto a intensidade espiritual quanto a força de uma identidade em constante transformação. Esse elemento confere à obra um tom de vigor e determinação, sugerindo que o caminho da identidade e da ancestralidade é um processo poderoso e vibrante.
A inclusão de elementos celestiais ao redor da cabeça — estrelas, luas e corações — sugere uma representação de forças cósmicas que protegem e orientam a figura central, dando-lhe uma aura divina. Esse conjunto de símbolos evoca tanto os orixás quanto entidades protetoras, sugerindo que a figura retratada carrega em si uma força espiritual que transcende o corpo físico. O colar com contas verdes e vermelhas e o pingente centralizado reforçam a conexão com tradições de matriz africana, possivelmente referenciando os símbolos de proteção e as ligações com os ancestrais.
Bixa Tropical
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Amarelo Não, 2023
Pintura - Tinta acrílica mate sobre papel Canson / 300g
Exibida em suporte digital
Bixa Tropical - Amarelo Não (2023)
Márcio Costa, conhecido artisticamente como Bixa Tropical, é um artista visual baiano cujo trabalho explora as cores, a intensidade e a vibrante tropicalidade do Brasil. Suas obras, autodenominadas de “arte quente e ardente”, capturam a exuberância do cotidiano brasileiro através de personagens expressivos e coloridos. Bixa Tropical utiliza sua arte como meio de expressão pessoal e resgate de memórias afetivas, mergulhando nas referências culturais da Bahia e nos temas da liberdade corporal e da valorização da presença e da identidade. Com uma abordagem que mistura o calor das cores e o despojamento das figuras, sua obra evoca o tropicalismo e o desejo de transgredir padrões visuais estabelecidos, afirmando-se como uma celebração das nuances e das complexidades do corpo e da cultura brasileira.
Amarelo Não é uma pintura acrílica sobre papel Canson, exibida em suporte digital, que apresenta uma figura feminina sentada, com a mão apoiada no rosto, em uma expressão de introspecção ou leve melancolia. A parede ao fundo tem uma cor rosa vibrante que contrasta com o amarelo da mesa e os tons quentes da figura. A personagem, com pele negra e cabelos volumosos presos em dois coques arredondados nas laterais da cabeça, veste um vestido azul de alcinhas, decorado com flores brancas, e uma das alças caída. Seus lábios vermelhos, marcados e expressivos, contrastam com seu olhar levemente baixo, que parece perdido em pensamentos.
Sobre a mesa, há uma taça de vinho com líquido amarelo pela metade à esquerda, um prato azul com pedaços de queijo e uma faca ao centro, e uma jarra com líquido também amarelo à direita. Esses elementos criam uma atmosfera de refeição casual, mas com um toque de solidão e contemplação. A simplicidade dos objetos dispostos e a postura da personagem sugerem um momento de pausa. A combinação de cores fortes e traços simplificados realça a estilização característica de Bixa Tropical, onde o foco se mantém nos detalhes expressivos e na intensidade emocional.
Em Amarelo Não, Bixa Tropical utiliza o contraste de cores e a composição minimalista para explorar temas de introspecção e identidade, capturando um momento íntimo de pausa e reflexão. A expressão da figura, com o olhar pensativo e o gesto da mão apoiando o rosto, sugere um momento de autoconhecimento ou uma pausa existencial, rompendo com a representação usual de alegria e festividade associada ao tropicalismo.
A composição equilibra a figura e os objetos ao seu redor de forma a intensificar a sensação de solitude. A taça de vinho e o prato com queijo e faca sugerem uma narrativa que talvez possa a remeter um encontro frustrado. Esses elementos ordinários, adquirem profundidade emocional através do contexto criado pela figura central, como se fossem extensões de seu estado introspectivo.
Ao escolher uma figura solitária e melancólica entre cores vibrantes, Bixa Tropical parece subverter a ideia de tropicalidade associada exclusivamente à exuberância e alegria, e utiliza esses mesmos elementos para compor uma cena que é ao mesmo tempo vibrante e contemplativa. Amarelo Não desafia o espectador a enxergar o tropicalismo sob uma nova ótica, onde a intensidade das cores convive com a complexidade emocional, sugerindo que o calor da cultura brasileira também inclui momentos de introspecção e individualidade.
Juh Almeida
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Pode O Amor Me Salvar?, 2022
Fotografia analógica Ilford Hp5 Iso 400, impressão Fine Art
77 X 120 cm
Juh Almeida - Pode O Amor Me Salvar?
Juh Almeida é uma fotógrafa e cineasta baiana que constrói sua arte a partir de um olhar afrocentrado e experimental. Sua prática mescla elementos poéticos e documentais, explorando as narrativas visuais da diáspora africana e a complexidade das identidades negras no Brasil. Formada em Artes pela Universidade Federal da Bahia com foco em cinema e atualmente mestranda em cinema pela Universidade de São Paulo, Juh acredita no poder transformador da imagem. Sua obra é uma intersecção entre a arte e a vida, onde o potencial de novos imaginários surge como ferramenta revolucionária para reconfigurar percepções sociais e políticas. Ao transitar entre São Paulo e Rio de Janeiro, Juh integra aspectos da diversidade cultural brasileira em sua fotografia e cinema, fazendo de sua arte um espaço de resistência e questionamento.
Pode o Amor Me Salvar? é uma fotografia analógica em preto e branco, impressa em fine art e medindo 77 x 120 cm. A imagem mostra duas figuras femininas negras, posicionadas lado a lado, envoltas em véus translúcidos que conferem uma aparência etérea e mística. As duas mulheres encaram a câmera com expressões serenas e introspectivas, transmitindo uma quietude intensa. Seus rostos estão parcialmente cobertos por folhas e flores delicadamente dispostas, criando uma moldura natural que se mistura aos véus e suaviza os contornos de seus rostos. A mulher à esquerda tem os cabelos mais claros e volumosos, a mulher à direita, tem os cabelos mais escuros e trançados e um piercing de septo. Ambas encaram o espectador diretamente, desafiando-o a encontrar um sentido mais profundo na cena.
A textura suave dos véus, em combinação com a granulação do filme analógico, adiciona uma certa textura à imagem, onde a luz e a sombra se misturam para criar um ambiente que flutua entre o sonho e a realidade. A composição em preto e branco acentua a atemporalidade e a universalidade do tema, destacando cada detalhe das folhas, das pétalas e das expressões faciais das personagens.
Em Pode o Amor Me Salvar?, Juh Almeida constrói uma narrativa visual que desafia as noções tradicionais de amor, identidade e salvação, utilizando simbolismos visuais para questionar o papel do afeto como força restauradora e libertadora. A escolha do preto e branco elimina distrações cromáticas, permitindo que o espectador se concentre na textura e nos contrastes visuais, enfatizando as nuances emocionais e a profundidade da conexão entre as duas figuras. O véu, comumente associado a cerimônias e rituais, aqui se transforma em um elemento de proteção e mistério, sugerindo tanto uma intimidade quanto uma barreira sutil que preserva a essência das mulheres retratadas.
As flores e folhas que adornam os rostos das figuras evocam uma ligação com a natureza e com o sagrado, remetendo às práticas espirituais e de autocuidado que atravessam as culturas afro-diaspóricas. Juh reconstrói o imaginário convencional da salvação como algo externo ou transcendente, sugerindo que o amor e o cuidado vêm de dentro e das relações de afeto que construímos uns com os outros. O título Pode o Amor Me Salvar? emerge como uma reflexão sobre o potencial curativo e transformador do amor em meio a um mundo marcado pela dor e pelo sofrimento. Essa pergunta não é apenas retórica; é um convite para refletir sobre o que significa amar e ser amado em uma sociedade onde o racismo e a marginalização ainda criam profundas feridas.
Rafaela Kennedy
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Família Vaskes, 2020
Fotografia digital, impressão Fine Art
80 X 120 cm
Rafaela Kennedy - Família Vaskes (2020)
Rafaela Kennedy, artista visual amazônica, emprega a fotografia como uma ferramenta para desafiar as narrativas hegemônicas e reescrever histórias marcadas pela invisibilidade e estigmatização. Sua prática artística centra-se na valorização de pessoas que habitam as margens da representação cultural, unindo suas experiências como travesti e pessoa de ascendência indígena e negra para construir imagens que celebram as diversidades de gênero e identidade. Ao confrontar os estereótipos e problematizar o olhar excludente da sociedade, Rafaela promove um resgate visual de raízes indígenas e afro-brasileiras. Participou de exposições internacionais, como "REBOJO" em Londres, e recebeu o "Woman Artist Residency Award" na Zona Maco, no México, além de ter suas obras exibidas em eventos como a SP-Arte e a Mostra Contra o Racismo em São Paulo. Com uma estética que valoriza a dignidade e a beleza dos corpos e das experiências à margem, Rafaela Kennedy transforma sua arte em um ato de resistência e visibilidade.
Família Vaskes é uma fotografia digital impressa em fine art, medindo 80 x 120 cm, que retrata um grupo de oito pessoas negras posando ao redor e em cima de uma Kombi branca estacionada em um terreno de terra batida. A cena é composta por oito pessoas, cada uma exibindo uma expressão descontraída, capturando um momento de união e leveza. No centro da composição, duas figuras femininas, uma loira e outra morena, sentadas transmitem uma sensação de orgulho e confiança; suas roupas são as mais coloridas da imagem, atraindo o olhar do espectador. Do lado esquerdo delas está sentando um homem de camiseta azul de mãos dadas com a mulher loira. A direita e a esquerda, de pé, ao lado das portas abertas da lateral da Kombi, estão dois rapazes de bermuda e boné, mas sem camisa, um deles segura um ramo de folhas e usa óculos escuros. Sentados no teto da Kombi, estão dois jovens e um menino, os três de bermudas e sem camisa. À direita, da foto está um cone de trânsito laranja com uma luz sinalizadora. Ao fundo, a vegetação seca e a terra exposta criam um contraste com a brancura do veículo e os corpos ensolarados, realçando a naturalidade e autenticidade da cena. A disposição do grupo sugere uma organização quase teatral, mas ao mesmo tempo espontânea, que comunica afeto e proximidade.
Família Vaskes desafia as convenções tradicionais de retratos familiares, posicionando-se como um manifesto visual de afeto e resistência. Ao retratar uma família não convencional, Rafaela Kennedy subverte a ideia de “família” no contexto ocidental, expandindo esse conceito para incluir aqueles que constroem laços além dos vínculos de sangue, valorizando as relações escolhidas e cultivadas nas margens da sociedade. A obra celebra uma comunidade que se organiza em torno da solidariedade e do pertencimento, aspectos frequentemente negados a pessoas LGBTQIA+ e afro-indígenas no Brasil.
A Kombi branca, desgastada e ancorada em um cenário rural, emerge como um símbolo de resistência e mobilidade. Historicamente associada a viagens, coletividade e memórias de juventude, aqui ela representa a capacidade de adaptação e resiliência daqueles que, muitas vezes, são forçados a ocupar espaços periféricos. A presença do cone de trânsito laranja, sugere uma espécie de alerta, como se o grupo afirmasse seu espaço em um território que lhes foi historicamente negado. Esse objeto aparentemente incongruente adiciona um toque de ironia à imagem, lembrando ao espectador a constante vigilância e resistência enfrentada por aqueles que desafiam as normas sociais.
Emersom Rocha
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Dor e a Glória IV, 2024
Acrílica, nanquim, lápis de cor, marcador, pasta acrílica, waji e pigmento ouro sobre papel Kraft
50 X 50 cm
Emerson Rocha - Dor e a Glória IV
Emerson Rocha, artista visual afro-brasileiro de São Roque, São Paulo, destaca-se por sua habilidade em capturar as complexidades e potências da experiência negra em representações visuais de resistência e dignidade. Em suas obras, ele utiliza uma paleta característica composta de azul profundo, dourado e branco, explorando questões de identidade, afetividade periférica e autoconhecimento.
Formado em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Emerson utiliza sua arte como um espaço de empoderamento, onde o corpo negro é valorizado e celebrado, rompendo com os estereótipos limitantes. Em um contexto onde a representação muitas vezes desumaniza, Emerson subverte essas narrativas, criando retratos que dialogam com espiritualidade, ancestralidade e resiliência.
Dor e a Glória IV é uma pintura de 50 x 50 cm, realizada sobre papel kraft com uma técnica mista que envolve acrílica, nanquim, lápis de cor, marcador, pasta acrílica, waji e pigmento ouro. A composição central exibe o rosto de um homem negro, de expressão intensa e enigmática, que olha diretamente para o espectador com olhos completamente brancos, sem pupilas. Esse olhar vazio confere à figura um ar quase sobrenatural, desprovido de individualidade terrena e dotado de uma aura de transcendência. O cabelo, a barba e o cavanhaque do homem são pintados de dourado, uma referência ao estilo comum entre jovens periféricos que colorem seus cabelos e pelos faciais, dando a ele um toque de contemporaneidade e identidade cultural.
Quatro rosas douradas, com caules e folhas detalhadas, atravessam a cabeça do homem, formando uma cruz. Esses caules trespassam o crânio, deixando ferimentos visíveis de onde escorre um pouco de sangue tanto na entrada quanto na saída, em uma imagem que remete diretamente à coroa de espinhos do Cristo. A simbologia religiosa, reforçada pelo contraste do azul profundo do fundo e o dourado radiante dos elementos vegetais, cria uma atmosfera de martírio e sacralidade, como se o homem retratado estivesse destinado a carregar um peso simbólico maior que sua própria existência individual. Pequenas estrelas douradas, posicionadas ao redor, adicionam um toque cósmico, sugerindo que a dor e a glória do personagem transcendem o plano terreno.
Dor e a Glória IV apresenta uma figura que encarna simultaneamente sofrimento e transcendência, evocando uma iconografia religiosa que alude ao sacrifício e à santidade. As rosas douradas que trespassam a cabeça da figura são símbolos ambíguos: por um lado, remetem à beleza e fragilidade; por outro, pela presença do sangue e do ferimento, sinalizam a dor e o sacrifício. Essa combinação sugere que a resistência e a glória do personagem emergem de seu próprio sofrimento, numa leitura que aproxima o corpo negro de uma imagem messiânica. O paralelo com a coroa de espinhos de Cristo indica uma tentativa de sacralizar a experiência afro-brasileira, elevando-a a um patamar de redenção e dignidade espiritual.
O azul profundo do fundo, obtido a partir de uma mistura de acrílica e anil africano, não apenas destaca o dourado e o preto da figura, mas também cria uma conexão simbólica com ancestralidade africana e transcendência. Esse tom de azul carrega em si uma carga histórica e mística, simbolizando o pertencimento a algo que vai além do indivíduo, remetendo ao cosmos e ao infinito. Ao escolher essa cor para envolver a figura, Emerson constrói um cenário que remete a um plano espiritual, onde a figura é tanto um indivíduo contemporâneo quanto um arquétipo atemporal da resiliência negra.
Elton Panamby
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Sem Título / 2019
Fotografia digital de Filipe Espindola exibida em suporte digital
Elton Panamby - Sem Título
Elton Panamby é artista que tem uma pesquisa que explora as fronteiras entre o físico e o espiritual, trabalhando com práticas corporais, sonoras e oníricas. Sua arte se concentra em experiências rituais e manifestações visuais, numa tentativa de tocar e representar o invisível. Panamby, que se identifica como “mãe/mamão”, transforma suas vivências e processos de gestação em elementos artísticos, abordando a maternidade de forma descolonizada e plural. Transitando entre São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão, Panamby constrói uma poética que mescla ancestralidade e regeneração, desafiando normas de gênero e propondo uma visão de parentalidade alternativa e inclusiva. Sua prática inclui sonoridades e linguagens visuais como veículos para comunicar-se com dimensões além do mundo tangível, trazendo um enfoque espiritual e ritualístico às suas obras.
Nesta fotografia digital de 2019, Panamby captura uma cena íntima e mística. Ao centro da composição, vemos uma figura andrógina, de cavanhaque e seios, que segura uma criança nos braços. A figura adulta, que se apresenta com o torso nu, usa um colar elaborado com contas coloridas e uma coroa de búzios que cobre seus olhos. Essa coroa é feita de cordas e adornada com conchas, criando uma máscara ritualística que oculta a visão física e sugere uma percepção voltada para o interior. A pessoa veste ainda um turbante vibrante, em tons de laranja e detalhes em tecido estampado, que se eleva imponente sobre a cabeça, adicionando uma sensação de solenidade à imagem. A criança, de pele clara e cabelos cacheados, repousa de forma relaxada nos braços de Panamby, enquanto mama, em uma postura que denota segurança e aconchego.
Ao fundo, um tecido azul profundo estampado com formas que lembram espirais, ou conchas espiraladas, em tons de vermelho e amarelo, cobre toda a extensão da imagem. Esse padrão contribui para a atmosfera ritualística da cena, remetendo a referências de ancestralidade e espiritualidade africana. A paleta de cores intensas — laranja, verde, azul e dourado —, aliada à postura tranquila das figuras, imprime um sentido de paz e solenidade. Cada elemento visual na composição parece cuidadosamente selecionado para transmitir uma mensagem de união e sagrado.
Panamby constrói uma imagem que transcende o retrato convencional, explorando a relação entre maternidade, ancestralidade e espiritualidade de uma maneira visceral e transformadora. A obra evoca simbolismos profundos ligados ao cuidado e à proteção, mas rompe com as convenções de gênero e maternidade ao apresentar uma figura parental que desafia categorias tradicionais. A “coroa de búzios” que cobre os olhos de Panamby não é apenas um acessório decorativo; ela representa a conexão com o invisível, sugerindo que o cuidado e o amor transcendem a visão física, situando-se no plano espiritual e intuitivo. Essa escolha visual parece enfatizar a ideia de que a parentalidade é, antes de tudo, um estado de comunhão e percepção profunda, que vai além do olhar e da lógica.
O gesto de carregar a criança no peito, a amamentando, reforça um vínculo de proteção e confiança.
Esse gesto, geralmente associado ao arquétipo da “Madona com o Menino” na tradição ocidental, aqui é recontextualizado dentro de uma estética afro-brasileira que celebra a pluralidade de gênero e desafia a noção heteronormativa de família. A criança, protegida no colo, traz a continuidade, a regeneração e o futuro, enquanto a figura adulta atua como um guarda espiritual que acolhe e cuida, mas também ensina e guia.
Cosmos Benedito
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Sem Título / 2020
Pintura e colagem - Terra, búzios, pedras, ossos, plantas, sementes, papelão, papel, plástico, moedas antigas e chave
176 X 96 cm
Cosmos Benedito - Sem Título
Cosmos Benedito é uma artista autodidata do Alto Pantanal, região de Corumbá, Mato Grosso do Sul, cuja prática envolve uma profunda conexão com as narrativas e ancestralidades indígenas e pantaneiras. Transitando entre as fronteiras do Brasil e Bolívia, Cosmos utiliza seu trabalho para explorar e reconstruir memórias culturais e ambientais, articulando temas como a descolonização, corporeidade e autopercepção. Suas obras, muitas vezes compostas de elementos orgânicos e reciclados, propõem um discurso sobre a continuidade ancestral e a relação entre o corpo e a terra.
Como artista transmasculino, autista e deficiente auditivo, Cosmos enxerga sua arte como um espaço para expressar formas de existência que desafiam e expandem os limites impostos pela sociedade colonial. Através de uma “cosmopercepção” única, Benedito cria um universo visual que integra história, natureza e espiritualidade.
A obra, com dimensões de 176 x 96 cm, é uma composição complexa e multifacetada que combina pintura e colagem em uma tela repleta de materiais simbólicos. A parte superior da obra é dominada por um céu azul turquesa, sobre o qual se destacam peixes estilizados, confeccionados com diferentes materiais e cores vibrantes. Centralizado no alto do céu, uma lua prateada feita de papel alumínio reflete uma textura rugosa, evocando uma atmosfera noturna e mística. Abaixo desse céu, uma faixa vermelha divide a composição, onde duas figuras, de apenas um olho grande e amarelo, semelhantes a máscaras rituais, flutuam com um olhar penetrante.
Na metade inferior da obra, o terreno é escuro e pontilhado com pequenos elementos como sementes, folhas, moedas antigas e fragmentos de chaves, que parecem se misturar com a terra. Uma serpente, pintada em preto, branco e vermelho, se estende de um lado ao outro da composição, reforçando a simbologia de renascimento e transformação. Ao centro, uma espiral amarela, composta com uma estrutura central semelhante a um fruto, cria um vórtice visual que atrai o olhar do espectador para o coração da peça.
Nesta obra, Cosmos Benedito transforma a tela em um microcosmo de conexões ancestrais e simbologias naturais. Sem Título é uma representação do ciclo de vida e morte, uma celebração das fronteiras entre o tangível e o invisível, onde cada elemento, desde os peixes ao topo até as sementes e chaves ao fundo, atua como um fragmento de uma narrativa complexa que fala de continuidade e resistência. A lua prateada, que domina o céu, sugere um tempo cíclico, onde as fases lunares simbolizam o renascimento e a perpetuidade da vida — uma vida marcada pelo intercâmbio entre o humano e o não-humano, um conceito central para Cosmos e sua abordagem translinguística e fronteiriça.
A presença dos peixes e da serpente dialoga com a ideia de movimento e adaptação ao ambiente pantaneiro, onde a fauna e a natureza circundante são fundamentais para a identidade da artista e sua comunidade. Esses animais também podem ser interpretados como guias espirituais, elementos que atravessam os mundos aquático e terrestre, em uma alusão à flexibilidade e resiliência do povo pantaneiro e indígena. A serpente, com suas cores vibrantes, evoca transformação e renascimento, enquanto se move sinuosa, desenhando o caminho da memória que Cosmos preserva e expande através de sua arte.
Adu
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Posithiva+Vhiva, 2020
Fotoperformance - Fotografia digital, impressão Fine Art aplicada em cartão conservação
Móbilie Formado Por 9 Fotografias
21 X 42 cm cada.
Total 105 X 210 cm
Adu Santos - Posithiva+Vhiva
Adu Santos é uma artista e pesquisadora de São Paulo que utiliza a arte para investigar questões de memória, museologia social e as complexas relações entre corpo, identidade e representatividade.
Graduanda em Museologia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Adu explora tensões entre presença e ausência nos discursos oficiais e nos legados coloniais, articulando perspectivas que buscam ressignificar e questionar a memória nacional a partir de um ponto de vista crítico e social. Sua prática artística multilinguagem envolve performance, fotografia e curadoria, abordando temas de resistência, vulnerabilidade e corporeidade. Para Adu, o corpo é um território de luta e reconexão, e sua arte visa transformar estigmas e dar visibilidade a histórias e vivências marginalizadas.
Posithiva+Vhiva é uma fotoperformance composta por nove fotografias digitais organizadas em formato de cruz, cada uma medindo 21 x 42 cm e formando uma instalação de 105 x 210 cm. A série, impressa em fine art e montada sobre cartão de conservação, apresenta o corpo negro transfeminino de Adu Santos em diferentes ângulos e fragmentos, capturando uma presença intensa e visceral. As fotografias estão dispostas sobre um fundo revestido com bulas de remédios, que preenchem as paredes e envolvem a artista em uma atmosfera marcada pelo tom vermelho intenso. A iluminação vermelha domina a cena, conferindo à obra uma qualidade ritualística e dramática, como se cada detalhe de corpo, pele e textura fosse cuidadosamente iluminado para enfatizar tanto a força quanto a fragilidade.
O conjunto de imagens oferece uma visão fragmentada do corpo de Adu: a parte superior da cruz destaca seu rosto, com olhos que encaram o espectador, desafiando qualquer tentativa de invisibilização. No centro, o tronco nu é mostrado em uma postura de exposição e entrega, com braços estendidos e abertos. A região inferior da cruz traz closes do corpo de costas e de frente, revelando detalhes íntimos e desafiadores que enfatizam a vulnerabilidade e o poder do corpo em sua totalidade. A composição geral é construída de maneira que cada imagem parece confrontar e questionar a percepção do espectador, enquanto a textura das bulas de remédios ao fundo introduz uma camada adicional de significado, referindo-se ao impacto da medicalização e aos estigmas relacionados ao corpo soropositivo.
Posithiva+Vhiva é uma obra que aborda com profundidade e complexidade os estigmas e desafios enfrentados por corpos soropositivos, em especial aqueles que pertencem à comunidade LGBTQIA+ e negra. A escolha das bulas de remédios como pano de fundo criam um elemento simbólico que remete ao impacto da medicalização constante e ao peso psicológico de viver com uma condição que a sociedade insiste em estigmatizar. Adu Santos subverte esse contexto ao colocar seu corpo nu e desafiador em frente a essas bulas, criando um contraste visual e conceitual onde o corpo é soberano e afirma sua existência em um espaço frequentemente dominado por olhares de estigma e preconceito.
A cor vermelha, que predomina em toda a composição, transcende o simbolismo de sangue e vida, tornando-se um grito visual de resistência e afirmação. Ao inundar o ambiente com essa cor, Adu estabelece uma conexão com o corpo e a experiência da soropositividade, mas também com o simbolismo do sangue como veículo de continuidade, resistência e pertencimento. A cruz formada pelas imagens é uma referência carregada de significados; ela evoca tanto o sacrifício quanto a redenção, subvertendo o simbolismo cristão para afirmar a dignidade e a complexidade de corpos que são historicamente marginalizados.
Rainha F.
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Alvorada, 2021
Fotografia digital, impressão Fine Art
120 X 80 cm
Rainha F - Alvorada
Rainha F é uma artista visual e costureira nascida no Rio de Janeiro e radicada entre Rio e São Paulo.
Estudante de Belas Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sua prática explora as simbologias e os códigos matrimoniais, subvertendo-os para questionar estruturas coloniais e patriarcais. A artista utiliza sua vivência para reconfigurar a noção de casamento, especialmente no que tange à exclusão e marginalização de corpos negros e dissidentes de gênero nesse ritual. Em suas obras, Rainha F costura narrativas de resistência e autonomia, desconstruindo o imaginário romântico ocidental e abrindo espaço para novas possibilidades de afeto e presença no âmbito simbólico do matrimônio. Seu trabalho destaca-se pela crítica ao monopólio da branquitude sobre os ritos e pela criação de uma poética visual que ressignifica o papel da "noiva", um arquétipo historicamente opressor para corpas dissidentes.
Alvorada é uma fotografia digital de grande escala (120 x 80 cm), impressa em fine art, que captura um momento de serenidade e introspecção. A imagem apresenta uma figura negra deitada entre flores brancas, imersa em uma penumbra suave que acentua a paleta contrastante entre o escuro de sua pele e as pétalas claras. A composição é marcada pelo rosto do sujeito, parcialmente iluminado, que olha diretamente para cima, com uma expressão séria e desafiadora. Vestindo um traje verde-escuro de textura ondulada, a figura parece quase fundir-se com o fundo floral, criando uma composição de elegância soturna. As flores, delicadas e majoritariamente brancas, são agrupadas em torno da cabeça, evocando uma coroa ou um ritual de passagem. Pequenos pontos de luz delineiam suavemente o contorno do rosto, enquanto sombras profundas acrescentam mistério à cena.
Alvorada é uma obra que desafia e reinterpreta o conceito de matrimônio e o papel da “noiva” através de uma simbologia subversiva. Ao deitar a figura negra entre flores brancas, Rainha F evoca um ritual de passagem ou um instante de despedida e renascimento. A escolha das rosas brancas, tradicionalmente associadas à pureza e à morte, intensifica a tensão entre a expectativa de inocência e o peso da opressão, temas recorrentes em sua prática. Aqui, a artista cria uma narrativa visual que transforma o corpo negro, historicamente excluído das representações afetivas e cerimoniais, em um ícone de resistência e renovação. Em vez de se submeter ao ideal de pureza imposto pela branquitude, o corpo negro emerge como a própria personificação de um “alvorecer” que ressignifica e rompe com as tradições.
A iluminação, que deixa partes do rosto em sombra, sugere uma introspecção sombria, como se o sujeito estivesse absorvendo as camadas de significados projetadas sobre ele. Esse jogo de luz e sombra constrói uma atmosfera de ambiguidade, onde vida e morte, começo e fim coexistem. O verde do traje pode remeter a associações de fertilidade e regeneração, indicando uma crítica à esterilidade imposta aos corpos marginalizados no campo dos afetos e do matrimônio tradicional. Essa indumentária, detalhada e quase camuflada entre as flores, destaca a presença robusta do corpo enquanto desafia o olhar do espectador a confrontar a ideia de invisibilidade e ausência que tantos corpos dissidentes enfrentam.
Rafa Bqueer
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Casaco Themônia - Uhura Bqueer, 2023
Lamê, manta acrílica, tecido de paetê, lycra e pelúcia
130 X 72 X 288 cm
Rafa Bqueer - Casaco Themônia
Rafa Bqueer é um artista visual e performer, nascido em Belém do Pará, cujas práticas transdisciplinares atravessam as fronteiras entre as artes visuais, performance, moda e arte-educação. Com um olhar aguçado sobre questões raciais, de gênero e da comunidade LGBTQIA+, o trabalho de Bqueer explora as complexidades dessas identidades marginalizadas e sua relação com a arte contemporânea. Formado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), o artista tem participado de importantes exposições nacionais e internacionais, incluindo o MAK Center for Art and Architecture em Los Angeles, e o Museu de Arte do Rio (MAR), onde realizou a sua individual “UóHol”. Rafa Bqueer se destaca também pelo uso de diferentes materiais e formatos, muitas vezes combinando moda e performance para investigar os atravessamentos entre o campo da arte e questões sociais urgentes. Seu trabalho é permeado por uma busca constante por subverter representações estigmatizadas e criar novas narrativas sobre corpo e identidade.
Casaco Themônia é uma escultura imponente e vibrante, medindo 130 x 72 x 288 cm, e é confeccionada com uma rica combinação de materiais, incluindo lamê, manta acrílica, tecido de paetê, lycra e pelúcia, que conferem textura e brilho à obra. A escultura evoca uma figura caricatural que oscila entre um casaco de pele escuro e uma criatura fantástica, parecendo um híbrido entre o familiar e o monstruoso.
No casaco, destacam-se dois enormes olhos esbugalhados com bordas douradas, cercados por cílios pretos e com íris escuras e cintilantes, que criam uma expressão entre o cômico e o atento, como se a criatura observasse o espectador de maneira fixa e penetrante. Estes olhos se destacam sobre uma face coberta de pelúcia preta densa do casaco, que adiciona uma sensação de volume e calor, reminiscente de um animal peludo. Acima dos olhos, emergem dois chifres grandes e curvados em um rosa vibrante e metálico, reforçando o caráter fantástico e lúdico da obra. Logo abaixo dos olhos, uma boca exagerada exibe lábios grandes e volumosos em um tom de rosa metálico. Esses lábios enquadram uma série de dentes triangulares, dourados e pontiagudos, que se destacam contra o rosa e oferecem uma tensão entre o atraente e o ameaçador. Da boca, emerge uma língua longa, ondulante e sinuosa, feita de lamê em um tom de rosa metálico. A língua se estende desde a boca até o chão, desdobrando-se como um tapete de cetim brilhante que parece convidar o público a seguir o seu caminho até a criatura.
Nesta obra, Rafa Bqueer desafia noções tradicionais de moda e escultura ao criar uma entidade visual que é ao mesmo tempo objeto de desejo e caricatura, invocando a ideia de “Themônia”, termo carregado de significados no contexto LGBTQIA+ brasileiro. A palavra “themônia” remete à resistência e subversão dentro da comunidade queer, evocando figuras que assumem uma postura de “bicho” ou criatura excêntrica, redefinindo a identidade através da excentricidade. Ao intitular o trabalho de Casaco Themônia, Rafa Bqueer não apenas homenageia a coragem e a performance de identidades marginalizadas, mas também afirma a centralidade da diferença e da pluralidade de expressão na arte contemporânea.
A estética exagerada da peça, com suas formas volumosas e cores chamativas, reflete a cultura da resistência visual de corpas queer. Os materiais brilhantes e o design caricatural da figura trazem à tona um senso de espetáculo e teatralidade, características fundamentais do universo LGBTQIA+ e, particularmente, do carnaval e da cultura popular brasileira. A boca aberta e os dentes afiados, combinados com a língua longa e proeminente, podem ser lidos como um símbolo de desafio, um riso escancarado que recusa silenciamento e reivindica o espaço. A obra, assim, projeta uma monstruosidade lúdica, que abraça o estranho e o exagerado como atributos de poder, desafiando o espectador a confrontar suas próprias percepções sobre normalidade e anomalia.
Lucas Cordeiro
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Encontro, 2024
Escultura: Colagem de abas de bonés e placas de circuito impresso em suporte de ferro.
80 X 25 X 12 (Escultura) + 160 X 10 cm de diâmetro (2x suporte)
Lucas Cordeiro - Encontro
Lucas Cordeiro, nascido e criado em um contexto urbano brasileiro, é um artista visual cuja obra investiga as dinâmicas sociais e tecnológicas que moldam a vida contemporânea, especialmente nos espaços periféricos e nas relações raciais. Sua prática artística é marcada pelo uso de objetos cotidianos e descartados, como elementos da cultura pop e componentes tecnológicos, para refletir sobre a complexidade das interações humanas e a transformação dos espaços urbanos. Cordeiro transita entre a escultura, a instalação e a colagem, explorando a tensão entre a materialidade dos objetos e as histórias que eles carregam, evocando memórias culturais e questionando as hierarquias estabelecidas entre o centro e a periferia.
Nos últimos anos, o trabalho de Lucas tem sido reconhecido em diversas exposições, trazendo à tona discussões sobre como o consumo, a tecnologia e a identidade racial se entrelaçam nas metrópoles brasileiras. Em suas obras, ele critica o esvaziamento simbólico de itens produzidos em massa, mas também reinterpreta esses objetos ao inseri-los em narrativas artísticas, oferecendo novos significados e questionando as relações de poder que permeiam o cotidiano. Cordeiro propõe, assim, um olhar alternativo e subversivo sobre a urbanidade e o descarte, transformando o banal em uma crítica densa e visualmente instigante.
A escultura Encontro de Lucas Cordeiro é composta por uma intrigante justaposição de elementos da cultura urbana e da tecnologia descartada. A obra está apoiada em um suporte de duas hastes de ferro de 160 cm de altura e tem 80 centímetros de largura. Sobre cada uma destas hastes está um boné da marca Adidas, laranja, com as três faixas brancas que são características da marca, na sua lateral. Os bonés estão um de frente para o outro e se conectam por dez abas sobrepostas que formam uma linha horizontal e se encontram no centro. As abas dos bonés formam uma linha contínua, quase como um enfileiramento disciplinado, remetendo a uma estética de repetição industrial. Penduradas abaixo das abas, uma série de trinta tiras de circuito impresso, verde-escuras, desgastadas e com marcas de queimaduras, pendem em uma colagem caótica, contrastando fortemente com a regularidade dos bonés.
Os bonés de cor laranja, quase fluorescentes, remetem a um senso de juventude e pertencimento urbano, ao passo que as placas de circuito impresso chamuscadas, com seus componentes eletrônicos à mostra, criam uma textura visual que mistura o avanço tecnológico com os traços de obsolescência e desgaste. O suporte de ferro bruto sustenta a peça, acrescentando uma sensação de peso e resistência, como uma coluna de apoio que reforça a dualidade entre o novo e o velho, o valorizado e o descartado.
Em Encontro, Lucas Cordeiro explora os contrastes e tensões presentes na vida contemporânea urbana, propondo uma crítica visual ao consumismo e à obsolescência programada. O uso dos bonés laranja, um ícone do vestuário esportivo popular e da moda urbana, representa não apenas o pertencimento a uma cultura, mas também a mercantilização de identidades periféricas. A escolha do laranja, cor chamativa e associada à visibilidade, reforça essa ideia de identidade coletiva que é simultaneamente celebrada e instrumentalizada pela cultura de massa.
Por outro lado, as placas de circuito impresso trazem uma simbologia densa. Elas representam o lado invisível da modernidade – a infraestrutura digital que sustenta o mundo atual, mas que, uma vez descartada, se torna obsoleta, inútil. Essas placas, queimadas e corroídas, aludem à efemeridade da tecnologia e à rápida transição entre o útil e o descartável, evidenciando o impacto ambiental e social do consumo desenfreado. A posição das placas, pendendo como fragmentos de algo que já não tem utilidade, cria uma metáfora visual para a desconexão entre a sociedade de consumo e as consequências de seu próprio descarte.
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O objeto que você tem em sua frente agora, e que pode sentir e tocar ao ouvir este áudio, é a representação tátil de uma obra que se encontra no centro do espaço expográfico, denominada Moita.
Um cubo central sustenta e é coberto por folhas que tem suas formas trançadas à semelhança das folhas de Espada de São Jorge, também chamada de Espada de Ogum, considerada uma planta protetora e que, aqui, carrega também o conceito de purificação, expansão natural e força.
Estreitas na parte de baixo, arredondadas ao centro e levemente em ponta na parte superior, as folhas desta moita apoiam em todos os lados monitores que exibem incessantemente diversas obras de artistas aqui presentes. Representam artistas/ quilombos/ aldeias/ territórios/ comunidades/ humanos/ profissionais que compõem a mostra.
Imagine que uma moita tem suas folhas e também seus brotos, de onde novas vidas podem surgir. Imagine também que essa moita de Espadas de São Jorge ou Espadas de Ogum, de alguma maneira, envolvem, guardam e defendem os televisores - ou as obras dos artistas participantes. Chamadas de “espadas”, essas plantas fazem menção aos símbolos e signos de religiosidade de matriz africana e às florestas, mas também às armas que estão a postos, embora não necessariamente empunhadas. Uma possibilidade de intervir na herança colonial, reflorestar nossos imaginários e garantir que outros futuros ancestrais possam seguir brotando, com alegria, amor e vitalidade.
Como Luana Kaiodê diz em seu texto curatorial, Indomináveis Presenças chega figurada como uma grande moita anticolonial, criando raízes fortes e profundas, gerando brotos e se expandindo e tocando tudo como se fosse a luz do Sol, dominando o entorno com camadas, com força de floresta, como os guetos, assentamentos, favelas, morros, quebradas e comunidades.
“Indomináveis Presenças” é apresentada pelo Ministério da Cultura por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura e do Banco do Brasil. Patrocínio: Banco do Brasil. Uma realização Afrontart, Ministério da Cultura e Governo Federal.
Luana Kayodé e Cintia Guedes
Curadores